Conservadores atacam políticas públicas para criança trans

Movimentos de direita combatem terapias de transição na infância e adolescência, apesar de validação em pesquisas

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Bandeira símbolo do orgulho transgênero em gramado ao lado do Capitólio, em Washington, nos EUA - Anna Moneymaker - 22.mai.23 / Getty Images/AFP

Cláudia Collucci
Cláudia Collucci

Repórter especial da Folha. Mestre em história da ciência pela PUC-SP e pós-graduada em gestão de saúde pela FGV

[RESUMO] Políticas de saúde voltadas a crianças e adolescentes transgênero sofrem reveses no Brasil, nos EUA e em outros países com investida de grupos conservadores e políticos de extrema direita, que têm mobilizado casos esporádicos de pessoas que se arrependeram do processo de transexualização para patrocinar leis que cerceiam a oferta de cuidados médicos, como terapias hormonais.

No início de junho, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) escreveu no seu perfil no Instagram: "Não existem crianças trans. Existem pais irresponsáveis". A publicação, amplamente compartilhada entre grupos conservadores, fez parte de uma ofensiva contra a participação de pais e crianças trans na Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, mas nem de longe representou um ato isolado.

A despeito de um conjunto de estudos nas áreas de desenvolvimento de gênero, neurociência e psicologia e de associações médicas internacionais atestarem a existência de crianças transgênero e validarem terapias direcionadas a elas, a medicina de gênero infantojuvenil tem sofrido reveses, com um escrutínio clínico, jurídico e político dos tratamentos ofertados.

Mensagem sobre crianças transgênero na 27ª Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo - Eduardo Knapp - 11.jun.23/Folhapress

O exemplo mais evidente vem dos Estados Unidos, onde ao menos 20 estados, a maioria liderados por republicanos, adotaram nos últimos anos medidas para restringir o acesso de crianças e adolescentes a cuidados relacionados à transgeneridade. O Alabama, por exemplo, aprovou uma lei que torna crime ofertar qualquer tipo de "tratamento de afirmação de gênero" a menores de 19 anos.

A lei prevê pena de prisão de até dez anos e multas para o médico ou outro profissional de saúde que prescrever tratamentos que ajudem na transição de gênero, como bloqueadores hormonais (que restringem os hormônios ligados a mudanças no corpo durante a puberdade), hormonização (uso de hormônios que fazem com que a aparência física da pessoa esteja de acordo com a sua identidade de gênero) e cirurgias.

O estado também proíbe que estudantes trans usem banheiros e vestiários com base em suas identidades de gênero e que professores, do jardim de infância ao quinto ano, tratem de qualquer assunto relativo à identidade de gênero em sala de aula.

Uma lei semelhante sancionada na Flórida suspendeu ainda a transição social de gênero, ou seja, reconhecer que um jovem é trans, usar os seus pronomes e nomes corretos e apoiar o seu desejo de viver publicamente como o gênero com o qual se identifica em vez daquele atribuído ao nascer.

O cuidado médico para crianças e adolescentes transgênero entrou na pauta das eleições presidenciais americanas. O governo de Joe Biden se mostra favorável aos cuidados de afirmação de gênero, exceto a cirurgias a menores de idade. Já o republicano Donald Trump anunciou o plano de aprovar uma lei federal proibindo todos os tratamentos a menores trans.

No fim do mês passado, a Suprema Corte americana concordou em analisar uma objeção, trazida em parte pela administração Biden, a uma lei do Tennessee que proíbe tratamentos a menores transgênero. É a primeira vez que a corte decidirá a respeito da constitucionalidade dessas proibições estaduais.

Em março deste ano, o Reino Unido mudou a política de cuidados às crianças e aos adolescentes trans. O NHS, o serviço nacional de saúde britânico, interrompeu o uso rotineiro de bloqueadores da puberdade aos jovens com disforia ou incongruência de gênero —angústia relacionada ao sentimento de que o sexo de nascimento não corresponde à identidade.

A justificativa do NHS é que, após uma revisão de documentos iniciada em 2020, liderada pela pediatra Hilary Cass, não encontrou "evidências suficientes para apoiar a segurança ou a eficácia clínica dos hormônios supressores da puberdade". Eles estão disponíveis agora apenas para crianças e adolescentes que participem de ensaios clínicos ou sejam atendidos em algumas clínicas privadas.

Esses medicamentos, os mesmos usados em casos de puberdade precoce, suprimem a liberação de estrogênio (hormônio feminino) ou testosterona (masculino) e impedem, temporariamente, o desenvolvimento dos seios, da menstruação, de pelos faciais e voz mais grossa, por exemplo.

Pesquisas mostram que o bloqueio hormonal, que é reversível, reduz o risco de transtornos psíquicos que podem afetar pré-adolescentes e adolescentes trans quando forçados a passar pela puberdade com um gênero com o qual não se identificam. Entre os efeitos colaterais de longo prazo da medicação, estão queda da densidade óssea e da fertilidade.

"Ele não precisa ser uma escolha, mas é uma possibilidade. Para muitos, passar pela adolescência se percebendo como mulher e ter barba, pelo, pênis crescendo, voz grossa e gogó é um inferno. Ou se perceber um homem que tem peito e menstrua. Na adolescência, isso tem um efeito perturbador, leva a abandono de escola, depressão, isolamento social, automutilação, tentativa de suicídio e suicídio", diz o psiquiatra Alexandre Saadeh, um dos pioneiros no Brasil no atendimento de crianças trans.

A decisão do NHS foi criticada pela principal organização internacional de médicos e profissionais que prestam serviços a pessoas trans, a Wpath, que respondeu afirmando que suas diretrizes são muito mais robustas que as do serviço de saúde britânico por serem "baseadas em revisões muito mais sistemáticas".

Revisões sistemáticas avaliam evidências para uma determinada questão médica a partir de um conjunto de estudos relevantes com objetivo de realizar uma análise crítica e abrangente da literatura científica sobre o tema.

Porém, as revisões sistemáticas da Wpath também têm sido questionadas, sob suspeita de que seus líderes tentaram interferir na produção dos estudos, encomendados ao centro de prática baseada em evidência da Universidade Johns Hopkins em 2018. As investigações ainda estão em curso.

No Brasil, uma portaria do Ministério da Saúde de 2013 sobre o processo transexualizador só autoriza a terapia medicamentosa hormonal no SUS a partir dos 18 anos, e as cirurgias de afirmação de gênero e outros procedimentos (como retirada das mamas ou do pomo de Adão) podem ser feitas com 21 anos ou mais.

Já uma resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) de 2019 autoriza o uso de bloqueadores nos primeiros sinais de puberdade e de hormonização a partir dos 16 anos. Ambos os tratamentos são autorizados apenas dentro de protocolos de pesquisa e em centros especializados. A norma veta cirurgias de modificação corporal a menores de 18 anos.

No momento, ambas as normas passam por revisão e ainda não se sabe se, em relação às crianças e adolescentes trans, serão mais restritas às que vigoram hoje. Segundo o Ministério da Saúde, todo o normativo do Programa de Atenção Especializada à Saúde da População Trans, como é chamada a nova política, está em tramitação para a publicação.

O CFM também discute internamente a revisão da sua resolução, mas não há ainda data para o assunto ser levado ao plenário. Existe uma forte pressão de grupos conservadores para que a norma seja mais restrita, proibindo, por exemplo, o bloqueio hormonal na puberdade e a hormonização antes dos 18 anos.

Mesmo seguindo à risca as atuais recomendações do CFM, o Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), do Hospital das Clínicas da USP, foi alvo de uma CPI (comissão parlamentar de inquérito) da Assembleia Legislativa paulista no ano passado, que investigou os tratamentos oferecidos a crianças e adolescentes trans.

O relatório final, de dezembro, propôs a interrupção de novos atendimentos de jovens que buscam o bloqueio hormonal na puberdade e a hormonoterapia. Cinco deputados (do PL, do Republicanos e da União Brasil) votaram contra o atendimento e três (do PT e do PSOL), a favor. O documento foi encaminhado aos Ministérios Públicos Estadual e Federal e ao governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), mas não teve nenhum efeito prático até o momento.

Para o psiquiatra Alexandre Saadeh, a atual resolução do CFM está correta em deixar o acompanhamento de crianças e adolescentes trans restrito ao ambiente de pesquisa. "A gente tem que produzir estudos, saber como as coisas aqui no Brasil estão acontecendo", afirma.

Segundo ele, embora o cuidado ofertado hoje seja limitado a poucos centros no país, o que dificulta o acesso, esses serviços são essenciais. "99,9% dos adultos trans dizem que tudo começou na infância e que a adolescência foi uma época muito difícil. Não poder ser quem você é, essa não existência, é uma violência."

Na opinião do endocrinologista pediátrico Daniel Gilban, coordenador de atendimento de adolescentes no programa identidade-transdiversidade da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), as pessoas que questionam a identidade de gênero de crianças o fazem por transfobia ou desconhecimento. "A pessoa trans não brota aos 18 anos."

De acordo com os médicos, os pais percebem que a criança tem uma identificação com as questões sociais de gênero que não batem com o sexo de nascimento entre 2 e 4 anos de idade. "É uma grande angústia, e a primeira reação é censurar, inibir. Aí percebem que isso vai se manter ao longo do tempo e começam a buscar ajuda", explica Saadeh.

Foi caso de Thamirys Nunes, fundadora da ONG Minha Criança Trans, organização que liderou um bloco de pais e crianças durante a Parada LGBT+ deste ano, com faixas dizendo "crianças trans existem". A iniciativa provocou a ira de grupos conservadores e houve moção de repúdio aprovada pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados.

Thamirys Nunes, presidente da ONG Minha Criança Trans, na Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo - Jardiel Carvalho - 2.jun.24/Folhapress

Thamirys conta que, aos 3 anos, o então filho Bento disse: "Mãe, sabe o que é triste? É triste que Deus não me fez menina. Eu seria tão mais feliz". Com 3 anos, 11 meses e 15 dias, ele voltou ao assunto: "Mãe, eu posso morrer hoje para nascer uma menina amanhã?".

Thamirys diz que sua reação imediata foi falar: "Pelo amor de Deus, não morre. O resto a gente dá um jeito". Nascia ali Agatha, hoje com 9 anos. A transição está sendo acompanhada por especialistas e, até o momento, não inclui o uso de terapias hormonais —muito menos de cirurgia.

De acordo com o psiquiatra Saadeh, a partir dos 8 ou 9 anos, a vida das crianças trans começa a ficar mais complexa, porque elas passam a ser vítimas de bullying na escola e percebem o preconceito ao redor. "Muitas crianças se fecham porque sabem que os pais estão sofrendo. O que uma criança nessa faixa etária quer? Ser amada pelos pais, ter uma convivência em grupo e ser aceita nele."

Entre os 9 e 13 anos, de acordo com critérios clínicos, os médicos podem indicar o bloqueio hormonal. "O bloqueio da puberdade é uma forma de ganhar um pouco mais de tempo para que a pessoa tenha certeza sobre a própria identidade de gênero", afirma Gilban, da Uerj.

Segundo Sadeeh, a literatura mostra que, quando bem-indicado, o bloqueio é eficiente tanto na definição da transgeneridade quanto na cisgeneridade. "Um pré-adolescente vai ser bloqueado por um tempo, até os 16 anos. Existe uma janela para poder fazer essa intervenção. Se não fizer nesse período, não vai funcionar."

A maioria, diz ele, vai se definir como transgênero e uma pequena parcela pode pedir para suspender o bloqueio. Entre as razões, estão motivos religiosos, não se sentir legitimado em não seguir o que a biologia determinou ou porque não era mesmo transgênero. "A pessoa amadurece e conclui, por exemplo, que é gay, bissexual ou heterossexual."

Seguindo a toada dos Estados Unidos, o Brasil tem registrado um número crescente de projetos e de leis que tentam cercear direitos de pessoas trans. Existem ao menos 77 leis municipais e estaduais antitrans em 18 unidades da federação —mais de um terço entrou em vigor em 2023, como revelou a Folha.

Entre as restrições, estão o uso da chamada linguagem neutra e o impedimento de debates sobre a temática de gênero nas escolas, o que contraria decisões do STF (Supremo Tribunal Federal). Há também vetos ao compartilhamento de banheiros e à participação de atletas trans em competições esportivas. Outras normas proíbem crianças e adolescentes trans de acessar serviços de saúde e de participar de paradas LGBTQIA+.

"A gente percebe esse movimento conservador se acentuando. Há vários projetos de lei tramitando, por iniciativa de políticos de extrema direita. Tivemos a absurda CPI em São Paulo e temos os aliados do bolsonarismo tentando mudar a resolução do CFM, o que seria péssimo", diz o endocrinologista Daniel Gilban.

Para Thamirys Nunes, o movimento político de extrema direita tem ocupado espaços importantes no Legislativo e no Executivo, dificultando o desenvolvimento de políticas públicas voltadas às crianças e adolescentes trans. "Isso desvirtua o debate de direitos humanos para um debate de moral e de costumes, com influências religiosas."

Jules Gill-Peterson, professora de história do gênero e da sexualidade da Universidade de Pittsburgh e autora de "Histories of the Transgender Child", diz que os conservadores de direita têm reciclado, com as crianças trans, a mesma linguagem vista no passado em torno de gays e lésbicas: os discursos sobre um suposto perigo para crianças e a pretensa necessidade de protegê-las por meio de leis.

O livro apresenta registros de hospitais e clínicas americanas do início do século 20 que retratam jovens trans vivendo com o gênero com que se identificam e lutando para fazer a transição, o que, segundo pesquisadora, derruba a tese de que crianças trans sejam um fenômeno social novo ou uma moda do momento.

Há, por exemplo, cartas escritas a mão por crianças trans a um famoso endocrinologista, Harry Benjamin, que era conhecido por fornecer assistência médica a transgêneros. As crianças pedem para o médico vê-las, dar-lhes permissão para usar as roupas que quisessem e falar com a família ou com o professor. "Eram crianças sabendo muito nitidamente que eram trans e enfrentando profissionais médicos", afirma Gill-Peterson.

Ao mesmo tempo, outro fenômeno tem servido de munição para os grupos conservadores: os crescentes relatos de pessoas que se arrependeram de mudar de gênero e passaram por uma destransição.

Um caso emblemático é o da britânica Keira Bell, que iniciou o processo de transição aos 16 anos e chegou a remover os seios. Aos 23, parou de tomar os hormônios masculinos e agora processa o serviço de saúde britânico. Para ela, a equipe médica falhou na avaliação e deveria ter questionado mais sua decisão de fazer a transição do gênero feminino para o masculino.

Estudos sobre casos de destransição mostram que as taxas podem variar entre 5% e 13%. Para os especialistas, essas situações são atribuídas, principalmente, a falhas no processo de acompanhamento.

"Qualquer intervenção biotecnológica não é brinquedo. Tem que ter critérios bem-definidos, um cuidado individual com cada criança e adolescente para não acontecer o que aconteceu com Keira Bell", diz o psiquiatra Alexandre Saadeh.

Ele conta que acompanhou um único caso de destransição em quase 30 anos de trabalho com a população trans. Um menino trans passou por hormonização aos 16 anos e, aos 21, quando iria fazer a retirada dos seios, se arrependeu e parou de tomar os hormônios masculinos. "A questão do diagnóstico correto é crucial. Não no sentido de patologização, mas de garantia de saúde."

Segundo o endocrinologista Daniel Gilban, essa minoria de pessoas que se arrepende não pode ser usada de pretexto para invalidar o direito de uma maioria e, com isso, limitar o acesso a tratamentos. "Ambas precisam ser respeitadas e acompanhadas."

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