Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Terra arrasada

O governo Bolsonaro se agarrou à negação da realidade como método; sem virar essa página, não há país possível

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No momento em que escrevo estas linhas, ainda é muito cedo para dizer se o governo Bolsonaro termina no fim de 2022. O que é indiscutível, no entanto, é que não há país possível caso o método de pensar a realidade típico do bolsonarismo continue ocupando os mais altos escalões do poder.

Digo isso de um ponto de vista que talvez seja bastante idiossincrático, ou mesmo estreito, mas que não deixa de ser iluminador também. Se é horroroso —como de fato o é— perceber que o bolsonarismo é essa maçaroca de truculência, preconceito e (muito provavelmente) corrupção mal disfarçada que vimos ao longo dos últimos quatro anos, é ainda mais assustador que o seu sustentáculo seja a negação sistemática dos fatos mais básicos.

É uma ironia trágica que esse tenha sido o modus operandi do sujeito que não parava de repetir "E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" (pobre Evangelho de João). Políticos, dirão os mais cínicos, são naturalmente dados a flexibilizar os fatos. Pode até ser, mas não consigo deixar de ver um abismo entre escamotear antigas diferenças com um adversário em nome de uma nova aliança, ou mesmo esconder uma conta cheia de dólares na Suíça, e dizer que a cor do céu é verde com bolinhas brancas, e não azul.

Jair Bolsonaro em cima de um trio elétrico ladeado por Marcos Pontes (à esq) e Tarcísio de Freitas
Jair Bolsonaro, apoiado por Marcos Pontes (à esq), atribuiu a uma suposta infiltração de ONGs a piora dos dados do desmatamento no país - Rubens Cavallari/Folhapress

Essa tem sido a manobra quase instintiva do bolsonarismo, o que explica o ódio do presidente à ciência. Foi assim quando Bolsonaro, apoiado pelo ex-astronauta e invertebrado moral Marcos Pontes, atribuiu a uma suposta infiltração de ONGs a piora dos dados do desmatamento no país. (Os dados continuaram piorando, e ele nem se deu mais ao trabalho de reciclar a teoria da conspiração para negá-los.)

Foi assim que Bolsonaro e Ricardo Salles propagaram a tese do "boi bombeiro" como o responsável por evitar incêndios no Pantanal ou afirmaram que regiões de floresta amazônica pegavam fogo naturalmente na estação seca.

E, para coroar essa mania de negar os fatos com uma irresponsabilidade assassina, foi assim que o presidente da República fez tudo o que pôde para vender medicamentos inócuos ou nocivos como milagrosos durante a pandemia, além de vomitar dúvidas e teorias da conspiração acerca da segurança e a eficácia das vacinas contra a Covid-19.

Não duvido de que Bolsonaro realmente acredite em algumas dessas afirmações descabidas, ou mesmo na totalidade delas. Se for esse o caso, eis mais um motivo para botá-lo para fora do Planalto o quanto antes: é loucura deixar os rumos de uma nação nas mãos de um sujeito que é incapaz de mudar de ideia diante das evidências, ou talvez seja incapaz de entender o que é evidência e o que é só crença, para começo de conversa.

É desanimador que muitos eleitores pareçam achar que a pandemia "é passado" e não deveria pautar sua escolha agora. No entanto, os estragos causados pela incapacidade de Bolsonaro de reconhecer os fatos já se tornaram um peso para o futuro, para as vidas de brasileiros que ainda nem nasceram.

Isso vale para a saúde pública: antes da pandemia, os movimentos antivacinação eram incipientes no país, mas agora ganharam repetidas injeções de anabolizante graças ao seu padrinho presidencial. Se a poliomielite voltar de vez ao Brasil, por exemplo, é na conta de Bolsonaro, e de mais ninguém, que as futuras crianças com paralisia infantil deverão ser colocadas.

E o mesmo vale para o ambiente: cada hectare desmatado vai pesar na conta das chuvas, dos eventos climáticos extremos e do preço dos alimentos na nossa mesa. Fatos são coisas teimosas. Quando um presidente briga com eles, todos sofremos.

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