Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

Memória visual é retrato do passado na mente? Experimento indica que não

Imagens mentais vívidas de algo recordado ativam áreas da visão, mas de forma diferente da experiência original

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O leitor de longa data deve saber que tenho tentado bater o recorde de citações a "O Senhor dos Anéis" no jornalismo científico brasileiro. Para manter a escrita, segue mais uma, que me parece especialmente lírica. "A lembrança não é o que deseja o coração. Ela é apenas um espelho, apesar de límpido", diz o anão Gimli durante uma despedida especialmente dolorosa para ele (não darei mais "spoilers"; leia o livro, vale a pena).

Todo mundo, creio eu, já sentiu dor semelhante à do pobre Gimli: a vividez de uma lembrança querida não compensa a impossibilidade de reencontrar quem a tornou especial. Mas vamos segurar as lágrimas e nos concentrar numa palavra significativa: "espelho". O anão desconsolado descreve a lembrança à qual se apega como uma imagem límpida. Será que é assim mesmo que a nossa memória funciona? Será que ela literalmente projeta uma fotografia do que aconteceu em algum canto do nosso cérebro?

Bem, um estudo que acaba de ser publicado traz uma fascinante resposta preliminar para essa pergunta. Na falta de personagens de "O Senhor dos Anéis", os pesquisadores usaram uma dupla de macacos para investigar a questão, com resultados que, ao mesmo tempo, confirmam e complicam a "hipótese do espelho".

Detalhe de mosaico antigo, representando o rosto de uma figura feminina com traços clássicos. A expressão é serena, com olhos grandes e uma boca delicada, enquadrada por cabelos ondulados e uma coroa ou diadema. O trabalho em mosaico é composto por pequenas peças, criando um efeito visual detalhado e texturizado.
Mosaico da deusa grega Mnemósine, ou Memória - Caroline Lena Becker/Wikimedia commons

Os experimentos e seus resultados estão descritos em artigo na revista especializada "Science Advances". A equipe da Universidade Normalista de Pequim, coordenada por Dajun Xing, acompanhou detalhadamente a atividade dos neurônios dos primatas (um macaco-reso e um cinomolgo) durante tarefas que envolviam aprendizado visual.

As células cerebrais dos bichos que eles buscaram acompanhar com precisão ficam no chamado córtex visual primário, ou V1, que são importantes tanto no momento em que o animal está recebendo uma informação visual quanto na hora de se lembrar dessa imagem.

Na primeira parte do experimento, a dupla símia via determinado desenho numa tela, que era mostrado em diferentes orientações espaciais (reto ou inclinado, digamos). Após 0,2 segundo, o desenho desaparecia, sendo substituído por uma tela em branco por 1,6 segundo. Por fim, uma nova imagem surgia na tela durante 0,2 segundo, e o bicho tinha de segurar ou soltar uma alavanca caso o padrão fosse incorreto ou batesse com a orientação espacial da imagem anterior, respectivamente. Um teste semelhante foi feito com cores.

Ao monitorar a atividade elétrica e a conectividade entre os neurônios com a ajuda de eletrodos, Xing e seus colegas verificaram que, ao ver a imagem de novo, o córtex visual primário dos macacos reagia de forma diferente do que quando os bichos observaram o padrão geométrico da primeira vez, além de produzir impulsos elétricos com menos intensidade. Ademais, o processo mudava sutilmente ao longo de repetidas exposições às imagens, além de afetar também áreas que não correspondiam ao processamento visual de estímulos externos.

Tudo indica, portanto, que a lembrança de uma cena tem algo da capacidade de enxergar o passado com os olhos da mente. Mas, em vez de ser um espelho límpido, a cena recordada funciona como um quadro que voltamos a pintar de formas ligeiramente diferentes cada vez que a memória entra em ação. Perde-se a precisão, é claro, mas ganha-se a capacidade de transformar o passado em algo quase vivo. Já é alguma coisa.

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