Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu

Muitíssimo bacana

Não é bacana dizer muitíssimo bacana, não combina

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O meu pai tinha ido comprar um computador, e o homem da loja estava a gabar as capacidades dos modelos de que dispunha. Eram todos ótimos —tudo dependia das necessidades do meu pai. 

Os vendedores nunca têm maus produtos, as pessoas é que, por vezes, têm necessidades mixurucas. Vendo que o meu pai se inclinava mais para determinado modelo, o vendedor dedicou-se a recitar todas as suas características e, no fim, dirigiu-se a mim, acrescentando um argumento que ele pensava ser decisivo: “Além do mais, esse computador vem com jogos muitíssimo bacanas”.

Imediatamente, eu soube que os jogos não eram bacanas de todo. Eu era pequeno, mas já tinha descoberto algumas coisas sobre a linguagem. Por exemplo, que as frases “o diretor chamou-me ao seu gabinete” e “eu fui chamado pelo diretor ao seu gabinete” descrevem o mesmo fato, mas não dizem exatamente a mesma coisa. Numa, eu sou o sujeito da frase, na outra não. 

Ilustração
Luiza Pannunzio/Folhapress

E o que interessa isso, se a régua estala com a mesma força na palma da mão? Calma, eu não disse que era muito diferente. Mas é diferente. Na segunda frase eu fico com a mão tão vermelha como na primeira, mas tenho um pouco mais de poder. É quase imperceptível, mas tenho. E como eu já era esse sutil linguista, quando o homem disse que os jogos eram muitíssimo bacanas eu percebi que não eram.
Porque a palavra “muitíssimo” e a palavra “bacanas” são de mundos diferentes. Não combinam. Não é bacana dizer “muitíssimo bacana”, o que significa que quem diz “muitíssimo bacana” nem 
sabe o que bacana é. 

Se alguém me disser que me ama extremamente, eu também desconfio que essa pessoa não faça ideia do que o amor seja. Se soubesse, teria pudor de misturar aquele burocrático advérbio de modo com o amor. Do mesmo modo, “eu vou te quebrar muitíssimo a cara” não é uma ameaça que deva ser tida em conta. Quem a profere nunca quebrou a cara de ninguém —e provavelmente já teve a sua cara quebrada por dizer coisas como “eu vou te quebrar muitíssimo a cara”.

E então o meu pai comprou o computador. Fomos para casa. Eu experimentei os jogos. Não eram bacanas.

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