Marcelo Viana

Diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.

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Gödel e o nascimento das ditaduras

O matemático disse ter descoberto como alguém poderia se tornar ditador nos EUA, mesmo respeitando a Constituição  

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Ao final de 1939, os submarinos alemães faziam da travessia do Atlântico uma aventura perigosa. Escapando ao alistamento no Reich, Kurt Gödel (1906–1978) partiu de Viena para Princeton na direção oposta: na companhia de sua esposa, Adele, cruzou a Ásia, na ferrovia transiberiana, o Pacifico e, novamente em trem, a América do Norte.

No Instituto de Estudos Avançados de Princeton ele fez alguns de seus trabalhos mais importantes, incluindo a prova da consistência do Axioma da Escolha e da Hipótese do Contínuo, duas afirmações com papel crucial na lógica e na matemática do século 20.

Meia dúzia de anos depois, Gödel decidiu solicitar a cidadania norte-americana. Um dos primeiros passos foi indicar as suas testemunhas: os amigos Albert Einstein (1879–1955) e Oskar Morgenstern (1902–1977), economista e cofundador da teoria dos jogos, a mais importante área de aplicação da matemática às ciências sociais. Para nossa sorte, Morgenstern deixou relato escrito do processo.

A imagem em preto e branco mostra um homem de óculos, vestindo um terno escuro e gravata, em pé em frente a uma estante cheia de livros. Ele tem uma expressão séria e está ligeiramente inclinado para a frente.
O matemático Kurt Gödel - Reprodução

Meticuloso e obsessivo, Gödel se preparou para a audiência de naturalização estudando absolutamente tudo sobre a história e a cultura dos Estados Unidos, da povoação humana do continente até as divisas exatas dos bairros de Princeton. Não adiantava os amigos, que já tinham sido naturalizados, insistirem que o juiz não entraria em tais minúcias: ele continuava estudando mais e mais livros e artigos sobre qualquer tema próximo.

Até que um dia, muito excitado, Gödel informou Morgenstern de que descobrira, com muito pesar, que a Constituição dos Estados Unidos contém contradições, e que sabia demonstrar como alguém poderia tornar-se um ditador e instalar um regime fascista no país, tudo "dentro das quatro linhas da Constituição"!

O colega tentou convencer Gödel a esquecer o assunto, dizendo que, mesmo que estivesse certo —o que Morgenstern duvidava—, "tais coisas são muito improváveis". Com o que sabemos hoje, está claro que ele tinha de ter levado o assunto muito mais a sério e, no mínimo, anotado a demonstração de Gödel para benefício das gerações futuras.

O juiz da naturalização conhecia Einstein e deixou que as testemunhas participassem na audiência. Infelizmente, começou perguntando de onde vinha Gödel e qual era o regime do seu país. "Da Áustria, que era uma república e agora é uma ditadura", foi a resposta. "Muito ruim! Mas isso não poderia acontecer aqui", ponderou o juiz. Foi o que bastou para lançar Gödel numa longa e empolgada explicação da sua descoberta.

Percebendo o horror de Einstein e Morgenstern, o juiz mudou rapidamente de assunto, e a audiência de naturalização terminou em sucesso.

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