Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Bateção de panela e de coração

É hora de acolher no dicionário um brasileirismo belo e cheio de vida

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Há quem pense que as palavras existem apenas nos dicionários, como peixes na água, e que do lado de fora só lhes resta a morte. A verdade é que, por razões variadas, escapa à lexicografia uma fauna riquíssima.

Ao contrário do que supõe o senso comum, os dicionários não criam as palavras, da mesma forma que as gramáticas não inventam modos de organizá-las em estruturas inteligíveis.

Todas essas criaturas nascem no mundo, na vida, na tremenda bagunça daquilo que os falantes criam e copiam. O único critério a que elas estão sujeitas de saída é a funcionalidade da comunicação.

Ruídos, irreverência, improvisação e criatividade fazem parte do jogo —ainda bem. Só mais tarde aparecem os estudiosos para tentar entender o que está acontecendo, distinguir padrões, distribuir documentos de identidade e registros em cartório.

Mas chega de prólogo. Os parágrafos restantes serão dedicados a argumentar que passou da hora de acolhermos em nossos dicionários um bicho brasileiro agreste de grande beleza e vigor: o substantivo feminino “bateção”.

Os principais dicionários dos dois lados do Atlântico o esnobam. Se no caso português isso é compreensível, pois a palavra batimento lhes basta com folga para resolver a questão das batidas,
aqui o quadro é diferente.

Temos a bateção de lata (batucada), a bateção de cabeça (desarmonia, confusão), a bateção de panela (protesto), a bateção de estaca e marreta (construção) e até a bateção de pernas (passeio, andança).

Em nenhum dos casos o sinônimo tradicional funciona. Palavras não ressoam apenas no cérebro, mas também nos ouvidos —no corpo todo. O batimento é incomparavelmente mais suave do que a bateção.

O coração tem batimentos, por exemplo. Enquanto bato no teclado, o que me chega do apartamento vizinho —em obras há meses, como tantos na quarentena— é uma inapelável bateção.

Também seria uma imprecisão vocabular cômica dizer que por cerca de quatro meses, de março a julho, em protesto contra um governo criminoso, as noites das grandes cidades brasileiras foram cacofonizadas pelo batimento de panelas.

Como se sabe, o “fora, Bolsonaro” que parte da população manteve vivo por tanto tempo se baseou na bateção mesmo —isto é, enquanto o ânimo cívico do pessoal não se afogou na covardia das instituições e na bateção de cabeça de uma oposição grogue.

Bateção já deu alguns passos no sentido de se oficializar. Consta do “Dicionário de Usos do Português do Brasil” (Ática) com uma abonação tirada, aliás, da Folha: “Siga o roteiro da bateção (bateria) nas noites de domingo”.

Até o Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras se rendeu à palavra, além de dicionários menos prestigiados. Houaiss, Aurélio e corretor do Word seguem firmes na recusa.

De modo geral, há boas razões para a cautela dos lexicógrafos. Além de retratar o vocabulário vivo de uma língua, dicionários têm a missão de guardar sua história, preservando a tradição.

São conservadores no melhor sentido da palavra.

Não podem ser novidadeiros se aspiram a permanecer, e o tumulto do presente está cheio de modismos da estação, espuma vocabular.

Dicionários gostam de ser vencidos pelo cansaço.

Vêm resistindo por exemplo ao verbo printar, sinônimo de imprimir que goza de algum sucesso no Brasil, mas é um anglicismo vira-lata. Não tiro a razão deles: quem sabe printar não nos faz o favor de cair em desuso antes que seja tarde?

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