Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Algoz é aquele que ganha de nós

Velha palavra de origem árabe teve sua apoteose nos Jogos de Paris

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Foi o jornalista Ingo Ostrovsky, amigo de olhar treinado em incontáveis coberturas esportivas, quem me chamou a atenção para o momento de glória vivido nos Jogos Olímpicos de Paris pela palavra algoz.

O uso esportivo de algoz já tem muitos anos de vida, mas pode ter atingido uma apoteose. Só nesta Folha foram 24 ocorrências, quase duas por dia de disputa, e se cito apenas os números da casa é para não aborrecer ninguém. A imprensa esportiva como um todo se mostrou rendida ao modismo.

No Jornal Nacional da última quinta (8), Ingo registrou a aparição de algoz em dose dupla na boca dos apresentadores, o que é significativo quando se considera a dieta vocabular frugal que o principal telejornal brasileiro impõe a Bonner e Renata.

A ideia, convém deixar claro, não é chicotear ninguém, apontando um suposto erro, abuso, essas coisas que os algozes da língua alheia apreciam. Apenas registrar a ascensão de um vocábulo antigo, de sabor um tantinho erudito, e tentar entender o que o seu sucesso quer nos dizer.

Algoz, como se sabe, é sinônimo de carrasco, verdugo, indivíduo que executa uma sentença de morte ou de castigo corporal. Tem registro escrito em português desde o século 14, embora certamente já andasse em circulação antes disso.

Em "al-gozz", que veio no pacote da herança deixada pelos séculos de ocupação árabe na península Ibérica, "al" é artigo e "gozz", pelo que consta, o nome de uma tribo em que se recrutavam carrascos -gente que, por genética ou cultura, devia ser talhada para as artes do sadismo.

Ao longo de sua história em nosso idioma, o algoz não ficou restrito a esse sentido primeiro –e, digamos, meio burocrático– de profissional encarregado de executar sentenças de morte e tortura. Passou a ser mais usado nas acepções figuradas de "indivíduo cruel, de maus instintos; atormentador, assassino" (Houaiss).

Foram essas credenciais que levaram o vocabulário do jornalismo esportivo a incorporar a palavra ao seu arsenal de metáforas violentas, até bélicas, onde já brilhavam as figuras futebolísticas do artilheiro, do matador, do tiro de meta etc.

E assim o algoz, criatura adorável, passou a ser empregado para designar o competidor que derrota outro –mais precisamente, o malvado que derrota aquele por quem a gente torce.

Em todas aquelas 24 ocorrências de algoz na Folha, a palavra se referia a quem havia superado um(a) atleta brasileiro(a) –quando não a uma delegação inteira que nos castigara coletivamente, como nas seis referências ao Japão como "algoz do Brasil".

Por alguma razão, quando somos nós os vencedores, a dramática metáfora que conjura um carrasco árabe com sua cimitarra afiada não costuma ser convocada para dar cores sanguinolentas ao noticiário.

A seleção feminina de futebol não foi algoz da Espanha, embora tenha lhe aplicado um chocolate fumegante, mas encontrou sua algoz na seleção americana, que a venceu por um sequinho 1 a 0. Quem quiser ver nisso um traço de coitadismo, pode.

Mas talvez nenhum uso de algoz tenha sido mais marcante, garantindo um lugar de honra para a palavra no vocabulário de 2024, do que aquele feito por Vinicius Jr. em seu tuíte histórico de 10 de junho.

Repercutindo a condenação inédita de três torcedores do clube Valencia a oito meses de prisão por insultos raciais a ele, o craque escreveu: "Não sou vítima de racismo. Eu sou algoz de racistas". Aí sim.

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