Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Procuram-se estranhos

'Trouxa, veada, cafajeste, sofredora, louca, vadia'

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Uma cena inesquecível. A mãe de amigos queridos acabara de perder seu companheiro de uma vida inteira e, mesmo assim, estava ali, celebrando os 40 anos da filha.

No banheiro, uma hora antes da mulher arriscar uns passos de rock na pista, ela chorava e me falava do vazio da casa, da saudade eterna, de envelhecer, do pavor de ver a quem se ama definhar. 

Depois ela ria e dançava. E então ficava um tanto triste e desaparecia. Mais tarde, voltava abraçada a uma amiga e elas gargalhavam. Na sequência, observava um casal atacando a mesa de doces e suspirava, seus olhos marejavam. Eram dor e alegria misturados com tanta clareza e humanidade e eu só pensava como algumas pessoas da minha família veriam aquela cena.

Quase posso ouvi-los comentar que a mulher nunca deveria ter amado aquele homem. Onde já se viu enterrar o marido e cinco dias depois rodopiar festiva ao som dos Beatles? Também os vejo comentando que a coitada estava acabada, chorando copiosamente pelos quatro cantos da festa, “por que não deixaram a velha em casa? Os filhos a obrigaram a ir!”. “Essa não dura até o fim do ano, ela vivia para aquele homem!”. “Essa nunca me enganou, estava com ele por dinheiro.” 

Mulher dança com namorado em baile de São Paulo
Mulher dança com namorado em baile de São Paulo - Gustavo Lacerda/Folhapress

Cresci em meio a manchetes maniqueístas que dividiam homens entre “trouxas, veados e cafajestes” e mulheres entre “sofredoras, loucas e vadias”. 

Na adolescência, percebi que eu era trouxa, veada, cafajeste, sofredora, louca, vadia e mais um dicionário inteiro com adjetivos, antônimos e tempos verbais. Eu sentia tantas informações desconexas revirando meu estômago que chamei isso de ser estranha e assim ficou acordado, durante um bom tempo, entre mim e aquele pequeno e tosco universo (as pessoas daquela escola, daquele bairro, do churrasco familiar emanando, ainda que disfarçadamente, uma forte fumaça conservadora). Ser estranha pelo menos me concedia um rótulo a ser desgastado nas unhas alheias. 

Agora imagine que suspeito uma senhora em luto recente tomando caipirinha e remexendo os ombrinhos? Imagine que horror e que aviltante um ser humano com a coragem de ser complexo e ambivalente? 

Eu estou fazendo, com a Camila Fremder e a Helen Ramos, um podcast sincerão no qual falamos, sempre, como amamos infinitamente nossos filhos mas também nos enfastiamos, vez ou outra, da maternidade. Como é mala não poder ler um livro até o final porque um reizinho mimado maravilhoso e fofo e insuportável resolveu tacar brinquedos em nossa cabeça e já escorregou sete vezes no próprio cuspe! 

Durante a gravidez, quando nem água parava na minha barriga e eu desejava vomitar o ar, tinha sempre um ou outro olhar inquisidor dos “normais” achando que eu estava rejeitando o bebê. Se tem uma coisa cruel nesse mundo é a normalidade (e a ignorância contida nela). Quase posso ouvir as pessoas normais daquela escola, daquele bairro, daquele churrasco em família, levando as mãos ao peito e falando “que pecado!”, “não nasceu pra ser mãe”, “essa geração não sabe ser família!”. 

Por aqui, foi uma vida procurando por outros “estranhos”. Conhecendo, conquistando, cuidando e guardando por perto. Essa é a única felicidade possível: achar a sua turma apesar desse mundo infestado de manchetes maniqueístas e de dedinhos em riste. Desejo a você, nesse 2020, que tenha com quem conversar de verdade. Com quem ser milhares de coisas em paz. Daquele jeito encantado e elegante, como uma senhora deslizando, com sabedoria e força, sobre a dura e irrestrita perda diária.

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