Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Deus abençoe o vexame

Pior do que o machismo estrutural, o machismo desestruturante

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Eu vinha acordando em sobressaltos circenses e quase sem voz, marcando otorrinolaringologistas, otorrinos especializados em apneia do sono, otorrinos que também são fonoaudiólogos e otorrinos holísticos. Foi quando dei um basta e recorri ao melhor remédio que trago sempre comigo: rodar a baiana.

Deixei performar, com gosto, a barraqueira que vive em mim. Abracei a descompostura. Descumpri contratos. Não fui madura nem profissional. Entretanto me livrei de conviver com colegas de trabalho que estavam reduzindo em dez anos o bom funcionamento do meu fígado. A voz voltou na hora, e dormi como o anjinho caído que sou.

Não digo que economizei dinheiro. Uma consulta médica e até mesmo um tratamento de longo prazo sairiam mais baratos do que a provável demissão que sofrerei em breve, porém isso não é nenhuma novidade na minha vida. Eu faço barracos desde 1989, quando o Binho Matoso me chamou de "feia sem teta" e eu o arrastei pelas pernas, por todo o pátio escolar, até que ele ficasse "feio sem face".

'Deixei performar a barraqueira que vive em mim' - Fotolia

Mas o que esses colegas de trabalho fizeram de tão grave contra mim? Nada que você tenha visto. Nada que alguém possa confirmar que aconteceu. Uma onda de lama invisível sempre me afogava quando nos reuníamos. Um desafeto silencioso, encoberto, que vai cutucando, vai ferindo, mas se o injuriado, em um dia mais sensível, decidir expor suas impressões, será colocado direto no espectro de paranoico. Você se sente cada vez mais sozinho, enfraquecido, desconsiderado, estranhamente atacado por algo clandestino, borrado e indefinido.

Olhares cúmplices e furtivos de deboche, piadas internas pretensamente inocentes instaurando climinhas ensaiados de branda desmoralização, a formação e o funcionamento de uma reles e infantil facção para o maldizer. Tudo de forma crescente e contínua. Teria sido melhor levar um soco.

Em meu primeiro emprego como redatora publicitária, depois de estagiar por anos, tive o infortúnio de trabalhar com um senhor que, além do hálito de esôfago embebido em fezes, tinha como principal característica o machismo desestruturante. Pior do que o machismo estrutural, o machismo desestruturante tem como meta atulhar sacos metafóricos com o pó da ossatura de mulheres, sobretudo as moças na aurora da vida. Esse indivíduo cometeu, dia após dia, mês após mês, ano após ano, uma das operações mais escrotas disponíveis no catálogo do assédio moral: a depreciação alheia simpaticona. Aquilo que a sua tia passivo-agressiva faz com você no Natal, mas no ambiente de trabalho, e vindo da boca de um homem com poder, é sempre muito pior.

Ele dizia coisas como: "Ai, olha ela! O cabelo tá lindo, hoje é dia que não vai pensar nada que preste". Falava baixinho, rindo, futucando uma feridinha que, rasgadinha com cuidado para que ninguém mais visse (e para que eu parecesse louca se um dia reclamasse), foi ficando profunda, crescendo internamente. Até o dia sagrado e libertador em que eu berrei tanto com essa criatura (e tive o ímpeto de enforcá-lo, mas só quebrei um lápis) que um colega da mesa ao lado resolveu me dar um passe. Só poderia ser um espírito do mal! Nada disso, era eu mesma, e em uma versão bem encarnada e civilizada.

Posso escrever infinitos romances dedicados a amores do passado que, ao longo da vida, me pediram que fosse mais refinada, mais delicada, mais controlada. E que, ao se virem expostos na minha oratória demolidora de furos de discursos, diziam que eu era maluca. Para a mulher, não é fácil nem trabalhar nem amar. Nem gritar sem dor nem dormir sem sustos. Que ao menos seja fácil mandar todo mundo à merda.

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