Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Golpes eletrônicos na terceira idade

'Caí num golpe desses de celular pra pegar velho trouxa. Perdi 3.000 reais'

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Fazia meses que meu pai não parecia tão bem disposto. O rosa discreto em suas bochechas revelava que ele tinha voltado de vez –e agora para ficar– ao portão ensolarado e movimentado da sua casa.

Eu me perguntava o que poderia ter acontecido. Arranjou uma namorada nova? Aumentou o antidepressivo? Vendeu alguma coisa que eu dei? Comprou algum aparelho eletrônico vagabundo na Santa Ifigênia com o dinheiro da venda de alguma coisa que eu dei? Essas são as únicas coisas que costumam deixar meu pai feliz.

Desde que a neuropatia havia piorado, papai colocara sua cadeira de balanço para dentro do quintal e decretou o estado de desânimo e fraqueza nas pernas. Não queria ver ninguém. Muito menos bronzear as canelas. Hoje a cadeira grande de madeira estava escancarada ali fora e uma meia elipse do seu corpo em movimento já despontava na calçada.

No banco da praça
No banco da praça - Bruno Martins/Unsplash

Confesso que, quando estacionei o carro e vi aquele monte de gente parada na porta, meu coração gelou. As irmãs viúvas da casa ao lado franziam a testa, parecendo ainda mais enrugadas; uma senhorinha de 91 anos, que viaja todo ano de ônibus, por 14 horas, para ver a filha em outra cidade, falava uns palavrões; o neto de uma das vovós viúvas, que ajuda meu pai com questões do tipo "o que é Pix?", mostrava algo em seu celular; e meu tio, irmão da minha mãe, que mente a idade e por isso ninguém tem pena de pedir que ele carregue móveis pesados quando algum idoso da rua precisa se mudar, gargalhava. E essa era a pior parte: sempre que acontece alguma desgraça na família esse tio tem ataques de riso.

Atravessei a rua machucando as palmas das mãos com minhas unhas tensíssimas. Onde estava meu pai? Lá dentro? Machucado? Desmaiado?

De repente a roda se abriu e, no centro dela, como num palco iluminado, eu o vi. E então voltamos ao começo desta crônica: corado, realizado, feliz, se balançando. Acho até que remoçou.

"Espero não ter perdido a parte principal", disparou Sandra, 84 anos, ao chegar com um bolinho. Parte principal de quê? O que tinha acontecido? E por que todo mundo parecia, ainda que apreensivo, tão animado?

"Caí num golpe desses de celular pra pegar velho trouxa. Perdi 3.000 reais."

Meu pai recebeu uma mensagem de texto dizendo que seu cartão de crédito havia sido clonado e que precisava ligar com urgência para um número. Ele fez isso e foi assim que, agora de verdade, clonaram todos os seus dados.

Internamente, sem dizer palavra, penso que a terceira idade é mesmo uma fase bastante complicada. Idosos são muito carentes de atenção. Precisam ter qualquer história, por mais merda que seja, para ter o que contar. Então era isso. Ser furtado, cair num golpe, perder o dinheiro exato do aluguel e ficar apertado de grana naquele mês havia movimentado o dia e a vida do senhor meu progenitor e de todo o seu entourage.

Mas eu de fato ainda não sabia de nada, e meu pai prosseguiu seu relato até o desfecho. Sabe-se Deus por quê, o banco tinha dado a um vovô durango, sem que ele jamais pedisse ou tivesse conhecimento, um limite de R$ 70 mil para depósitos, mas o cara pegou SÓ R$ 3.000. Apenas R$ 3.000. Todos comemoravam. "Viva o bandido bom, ou talvez burro mesmo." "Ele pegou o que precisava, mas não quis fazer estrago." Acho que queriam que o meliante estivesse ali entre nós.

As viúvas se benzeram, o menino da computação ficou de ensinar meu pai a fazer a verificação em duas etapas no Instagram, meu tio disse que não queria chegar "na idade deles" gordo e por isso recusou o bolo da vizinha. Eu senti uma alegria descomunal –os R$ 70 mil provavelmente sobrariam para mim, afinal– e me servi de duas fatias.

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