Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

A barriga da namorada do papai

Alucino que estou de conchinha com um filhote da raça shar pei

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Minha filha está obcecada pela minha barriga. Não sei mais o que fazer para agradá-la. Poderia usar minha autoridade de mãe e mandar um sonoro "cale a boca, vá escovar os dentes". Mas algo deu muito errado comigo, no quesito impor respeito dentro de casa, e estou fazendo regime para ver se passo no crivo de uma criança de cinco anos.

Foi nas férias de julho, quando ela viu a namorada do pai de biquíni, que meu inferno começou.

Voltou da viagem e, no segundo em que apareceu na porta de casa, muito antes de anunciar uma vontade louca de fazer xixi ou de me abraçar morrendo de saudade, mandou a real: "Mamãe, você tem muita barriga. A namorada do papai não tem nenhuma barriga. Nenhuminha mesmo. Ela senta e não faz essas ondas que a sua barriga faz, mamãe. Sabia?".

Minha primeira reação foi rir. Você passa oito terríveis dias longe da coisinha mais importante da sua vida e quando a pequerrucha fofinha volta –e você idealizou que seria um momento mágico, de abraços infinitos e intensos, você quase perfurando com a ponta do nariz aquele pescocinho suado com o perfuminho do céu, e sua neném perfeita dizendo "não há nada no mundo como a mamy"– você então percebe que de dentro da boquinha em formato de coração da sua filhinha pode sair a soma da maldade de 5.000 haters. Claro, ela é sua filha. No caso, minha. E eu não sou exatamente boazinha. E isso é bastante engraçado. Então eu gargalhei.

Foto mostra barriga de mulher deitada; no lugar do umbigo, ela tem uma flor, e as mãos à volta em forma de coração
Pixabay / Reprodução

Dez minutos depois, fui tomada por uma taciturnidade interna pesadíssima. Marchando funestamente, fui para a frente do espelho. Minha autoestima me informava uma nova nomenclatura: de grande gostosa 40+, passei a me enxergar como uma senhora grávida de um alien. Tomei seis cápsulas de Luftal, como se eu pudesse expelir prontamente cinco anos de descaramento com chocolates de variadas marcas. Culpei o glúten, o leite e a hipermobilidade (síndrome de deficiência de colágeno). Pesquisei sobre disbiose, intestino inflamado e "Dysautonomia: Symptoms, Causes, Types & How to Live".

Desde então, sempre que me vejo deitada de lado, alucino que estou de conchinha com um filhote da raça shar pei. Acaricio o bicho. De fato, meu abdômen desandou tem alguns anos. Por motivos gerais: meu antidepressivo me dá uma fome descomunal por doces; o cansaço extremo que sinto –por ter de trabalhar para 20 lugares ao mesmo tempo e quem sabe um dia somar um bom salário (e ainda ter de aturar, de um mercado escroto e invejoso, que um escritor sério deveria apenas escrever seus livros e abdicar de pagar os boletos dos parentes que dependem dele)– me dá uma fome descomunal por carboidratos. A gravidez deixou minha pança mais molenga, e meus interesses são mais "psicointelectuais" do que físicos. E tenho 44 anos.

Tudo isso é verdade, mas é mais verdade ainda que detesto me exercitar e detesto não comer o que estou a fim e na quantidade que estou a fim. Fui semianoréxica a vida toda e agora tenho fome. E isso é lindo. Então é verdade que eu estava meio que cagando para a minha barriga (sentia certo orgulho dela) até a minha Anna Wintour mirim me apontar dedinhos e me vetar da capa da sua Baby Vogue.

Minha filha então tirou uma foto polaroide de sua mochilinha e colocou na estante do seu quarto: era a imagem da namorada do pai (de biquíni, gatíssima, tatuada, morena, sexy, de fato nenhuma barriga, de fato tá de parabéns). Ao perceber que eu apenas sorri e falei "que linda, que ótimo, coloca aqui junto com as fotos da família", a criança passou a andar com a polaroide pela casa. Tomou banho com a foto, almoçou com a foto, dormiu com a foto, colocou a foto para brincar de UNO com ela e me abanou com a foto em dias mais quentes. Achei extremamente infantil que uma pessoa de cinco anos quisesse se vingar por ter passado longos oito dias longe da mamãe pela primeira vez na vida. Pelo menos era amor, e não o patriarcado (tenho minhas dúvidas).

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