Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu aborto câncer

Uma branca acorda de sonhos intranquilos

Eu tenho que acabar

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Primeiro a editora recusa meu livro sobre decepções amorosas. Meses depois, nem sequer confirma que recebeu meus originais sobre impasses familiares. Refuta na sequência uma obra sobre angústias profissionais. Joga no lixo minhas páginas sobre tentativas cômicas de relatos hipocondríacos. Bate a porta na minha cara quando tento vender qualquer ideia sobre agruras maternas.

Ela afirma que, para o mercado atual, o sofrimento de um branco, mais do que démodé, é antiético. Diz que minhas dores não têm importância literária alguma, que nada do que eu venha a escrever a partir desse lugar de branca "dando a volta por cima" ou de branca "rindo dos próprios perrengues" vai ser relevante para uma feira literária, um prêmio, uma tradução. Se não posso falar dos meus sofrimentos, devo me tornar então... uma escritora branca que fala sobre suas vitórias? Credo! Eu e a minha editora vomitamos ao mesmo tempo, em jatos verdes viscosos, como em filmes de terror.

Fantasio com tais cenas há anos e não consigo mais escrever nada. E esta, apesar de parecer (e ser) uma crônica sobre o sofrimento de uma branca, não é uma crônica sobre o sofrimento de uma branca (é, sim), porque eu seria absolutamente bizarra e alienada e péssima e ridícula se eu ousasse fazer isso (mas fiz).

Mulher pensativa vendo o mar
Krists Luhaers na Unsplash

Espera. Eu sempre usei a carta da mulher de periferia white trash. Meu pai fala "anteonte" para se referir ao dia que ocorreu antes de ontem, e eu já recolhi três bolinhas de um campo de golfe e levei até a recepção do hotel achando que uma criança as tinha perdido e ficaria feliz. Sempre usei a carta da neta de imigrantes que não deixaram herança, ou de filha de pais que não deixarão livros. Sempre usei a carta do bullying infantil. Caçoavam de mim pelos óculos com haste quebrada colada com fita crepe, pelo aparelho extrabucal, pelo corte de cabelo cagado. Funcionou por tanto tempo. Deu certo por mais de duas décadas. Não pode mais? Imagino a editora me explicando tudo isso. "Você corta o cabelo no Proença e arrumou os dentes nos Jardins. Você, 'escritoramente falando', é uma pessoa ridícula. Qualquer infortúnio superado escrito por uma branca de Higienópolis que agradece publis de vestidos nas redes sociais é uma vergonha para a nossa editora."

Eu entendo. Toda vez que entro no Instagram e vejo mais um longo relato de aflição, pavor e abandono de uma branca entrando ou saindo do puerpério eu quero morrer de tédio. Não aguento mais palestras, livros, encontros, podcasts sobre as mães brancas deprimidas, solitárias e NECESSITADAS DE NARRAR SUA DOR. E eu sou uma delas –ah, meu Deus, como surfei na onda do penar e da solidão materna. Ah, eu tive crises de pânico? Ah, meu casamento acabou? Ah, minha filha me dá trabalho? Ah, minha mamãe nem sempre é um sonho de mamãe? Eu não me leria. Vá ler um livro, eu me diria.

A editora grita "câncer!" e me sugere: "Faz um pet scan vai que dá certo!". Na análise, caberia vasculhar meu inconsciente em busca de abusos e assédios sexuais recalcados. Se pelo menos alguém tivesse me mostrado o pau numa escada de agência de publicidade. Se alguém tivesse enfiado minha cabeça numa lata de lixo de banheiro. Nada. Eu é que abusava dos meus estagiários e lhes exibia minhas tetas, que um dia já foram gotas imensas e firmes. Eu é que mando emails depois da meia-noite com o subject URGENTE. Apanhei alguma vez? Zero. E olha que eu peço com frequência.

Aborto? Morte traumática e recente de genitores? Vícios pesados? Internações? TDAH? Bipolaridade? Doença autoimune ou degenerativa? Nada. Não tenho nem asma ou bruxismo. Manco, mas infelizmente é pouco. Entro em crise por ter cozinheira e babá? Seria mentira. Abdico do meu colchão Tempur, pelo qual paguei em dólar, e durmo por um mês numa rede no Xingu? Você por favor me mate antes. É isso. Não posso mais escrever nada.

Eu tenho que acabar.

Erramos: o texto foi alterado

A frase "Eu tenho que acabar", do subtítulo da coluna, foi erroneamente inserida no primeiro parágrafo de versão anterior deste texto. 

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