Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu Todas guerra israel-hamas

Surreal buscar um médico para meu dedão quando há uma guerra em curso

O médico receitou não ler notícias no celular e voltar para o pilates

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Faz três semanas que estou com uma dor insuportável no dedão. Precisei abrir um xampu no dente e engoli parte do conteúdo, o que poderia ter sido excelente para o meu mau hálito, não fosse a gastrite que aquele produto sem alumínio e sem parabeno e sem sal e sem maus-tratos aos animais me deu. Gastrite me dá bafo de gás hélio com portão de ferro castigado pelo sol com flor morta de velório, então de nada adiantou ingerir o perfume da fórmula pura de hortelã silvestre para couros cabeludos sensíveis.

Não consigo abrir o iogurte preferido da minha filha sem falar palavrões. Ela me perguntou ontem o que são "taqueuparalho" e "cazzanculo" —por sorte tem uma mãe tão inventiva para palavras de baixo calão que nem podemos considerá-las vocábulos.

Acontece que acho bastante surreal procurar um médico para ver o problema do meu dedão quando temos mais uma guerra em curso. Uma guerra sobre a qual nunca jamais escreveria. E mesmo assim escrevi. Não li dez livros de 490 páginas cada um sobre o assunto, mas, porque não tenho respeito algum pela minha imagem, um dia meti lá no Instagram "um pensamento qualquer sobre o conflito". Eu deveria estar vendendo meias em publi.

Instalação em Jerusalém com 224 lâmpadas em homenagem às pessoas sequestradas pelo Hamas - Ahmad Gharabli/AFP

Ao que parece, cometi 874 erros por parágrafo, e minha vida foi tomada por uma enxurrada de aulas que chegaram até mim por todos os poros sociais e digitais do universo. Tamanha demonstração de afeto professoral me fez perceber com clareza que nem sempre temos que opinar sobre as coisas que não sabemos. Melhor dizendo: não devemos nunca opinar sobre as coisas que não sabemos.

Eu estava ocupada demais neste ano tentando 58 possibilidades de sucesso e de ganhar dinheiro e sempre terminando o mês arrumando uma 59ª opção, porque as anteriores ainda não pagaram, e fazendo de conta que não sou mais uma babaquinha de internet, mas é só olhar com esmero e profundidade para minha falsa alegria de nariz empinado nas redes para ter certeza absoluta de que sou uma completa imbecil. Então, por todas essas razões, não li todos os bons textos sobre Oriente Médio. Talvez eu não tenha lido nem três textos sobre Oriente Médio. Se o artigo estiver em inglês nem me mandem, eu travo em algumas palavras e abandono a leitura. Começo a ver as pegadinhas do Edu Primitivo nos stories e nunca mais volto para nenhum artigo do New York Times. Então por que eu quis opinar? POR QUE a gente quer opinar?

Estava seguindo um repórter que postava vídeos indizíveis sem disclaimer e senti que precisava escrever sobre o que estava vendo ou não sairia nunca mais da cama. Parei de seguir o perfil. Melhor ser uma "não sou capaz de opinar" do que insultar o mundo com minha ignorância. Parei de ver as imagens porque eu precisava ir ao pilates. No dia em que vi mais uma imagem terrível da guerra, desmarquei a aula particular de pilates —pois era impossível qualquer prazer ou autocuidado ou peruagem diante de tamanha atrocidade—, e o professor não quis me devolver o dinheiro do cancelamento "tão em cima da hora" e alegou que "estar horrorizada demais com as notícias" não consta dos anais dos atestados médicos. E então sofri pela guerra e pelos 150 reais perdidos do pilates.

Eu precisava escrever porque é isso que faço quando não suporto a realidade. Ah, que frase de efeito, hein, querida? Não vou mais escrever nadinha. Mas também não achei que, ao decidir não ver mais monstruosidades nem cometer meus não saberes selvagens sobre elas, eu poderia decretar o fim do período em que combinei comigo mesma que não procuraria ajuda para a dor no meu dedão. Porque a vida não pode parar, mas nem por isso eu seria tão minúscula e inadequada. Hoje não aguentei, fui ao médico e estou com WhatsAppite. O médico receitou não ler notícias no celular e voltar para o pilates.

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