Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
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Eu quero ser uma esposa-troféu

'Vejam que beleza a minha mulher e sua bunda caída!'

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Sei contar o número exato de vezes em que lancei algum livro, filme ou peça de teatro e um namorado esteve realmente feliz ao meu lado: zero.

Passa agora um flash na minha cabeça do rosto desses rapazes, chegando sempre ao final do evento ou sentados de canto, com cara de que prefeririam uma diarreia liquida parasitária com perda importante de eletrólitos a ter que ver uma mulher ser o centro das atenções.

Lembro que meu coração era disputado a tapa quando eu era uma garota que estagiava no marketing de um posto de gasolina e levava marmita em um nécessaire falsificado da Louis Vuitton (e eu nem sabia que era falsificado, porque nem conhecia a marca). Naquele tempo, caso eu espirrasse, tinha sempre uns cinco caras que se jogavam no chão para engolir perdigotos virais. Mas a partir dos 30 anos eu me acostumei a comemorar aumentos de salário ou projetos aprovados com amigas e não atualizar os manos. Pra que mexer com o ponto fraco (mole) deles?

Eu quero ser uma esposa-troféu e ter minha pancinha desfilada em uma praia. "Vejam que beleza a minha mulher e sua bunda caída! Ela trabalha sentada umas 15 horas por dia e dificilmente teria conquistado as coisas que conquistou se passasse a tarde inteira no simulador de escada da Bodytech. Dos cinco podcasts que lançou nos últimos cinco anos, cinco ficaram entre os cinco mais ouvidos do país. É autora de um livro best-seller que virou filme com uma das maiores atrizes da sua geração. Essa coxa com celulites escreveu dois filmes que, somados, fizeram quase 5 milhões de bilheteria! Com esses braços de mamma polenteira ela se tornou uma das cronistas mais lidas deste jornal".

Ilustração de Claudia Liz mostra homem e mulher dialogam um de frente para o outro. O homem está na cor preta sobre fundo vermelho e a mulher, na cor branca sobre fundo preto com cabelo vermelho.
Claudia Liz

Meus seios, que já seguram com total segurança uma caneta 10 cores musical com lanterna, alimentaram minha filha por 15 meses. O corte meio fibroso da minha cesárea lembra (além de uma taturaninha) as 30 horas que fiquei em trabalho de parto e a raquianestesia que ao invés de descer para os membros inferiores subiu até a goela, e eu tive que abraçar Ritinha pela primeira vez sem senti-la no peito. Consegui, depois de 20 anos de terapia e alguns livros feministas (não é papinho, eu consegui mesmo), me ver no espelho (e não me comparar com a Eva Green pelada em "Os Sonhadores" e querer morrer) e ficar excitada.

"Olha minha mulher, que belezinha! Suas pernas e braços são inteiros manchados com uma infinidade meio bizarra de sardas brancas, mas como ela já chega nos lugares se apresentando como uma espécie humana de salame, eu sinto orgulho de estar ao lado de uma jovem senhora que se autossacaneia em vez de estar com uma fadinha leve, fofa e submissa criada para angariar um trouxa rico."

Se eu fosse meu esposo, seria tão exibido e monotemático com meu troféu que eu mesma já teria me largado. Eu me colocaria em cima da minha cabeça como uma coroa, mas isso poderia ser lido como uma piada etarista. Deslumbrada com minha aquisição amorosa, eu me rodopiaria na pista de dança até que minhas protusões avançadas na L5-S1 evoluíssem para hérnias de disco graves que por fim evoluiriam para a síndrome da cauda equina.

Eu quero ser uma esposa-troféu. Já tem um tempo que chego a restaurantes, festas, aeroportos, reuniões e não recebo aqueles olhares libidinosos de "que bela porção de filet mignon fresco é essa", mas percebo outro tipo de olhar, um que sempre busquei e que finalmente me diz: "eu sei quem você é, seu trabalho chegou até mim e mexeu comigo". Que sorte estar ao lado de uma mulher que recebe reconhecimento e admiração (e tantos pedidos de "por favor faz propaganda da loja da minha prima", apenas parem).

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