Vladimir Safatle

Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.

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Vladimir Safatle

A transparência e o obstáculo

Demolições são indissociáveis de nuvens de poeira, de neblinas nos espaços

"É muito significativo perceber, quando vemos todos esses eventos em conjunto, incluindo as exultantes picaretas sobre o muro de Berlim em 1989, o quanto os rituais iniciáticos do mundo contemporâneo —na verdade rituais de morte— são fenômenos de falência e demolição espetacular, e não gestos construtivos." Este é um trecho de "Dentro do Nevoeiro", de Guilherme Wisnik (ed. Ubu, 192 págs.).

Tal passagem se refere principalmente a eventos como o 11 de Setembro de 2001, em Nova York, assim como a cenas paradigmáticas de implosão e quebra que marcam a arte contemporânea e parecem expressar a crença no colapso do pretenso pacto modernista com o progresso.

Essa compreensão de como nossa época é marcada por eventos espetaculares de demolição não é simplesmente uma parte de alguma forma de ritual melancólico diante das falências da modernização esclarecida. O que faz a singularidade desse livro é certa compreensão, digamos, dialética da demolição, na qual uma nova forma de sensibilidade e existência pode emergir depois do nevoeiro.

Ilustração
Marcelo Cipis/Folhapress

Construindo uma profunda articulação entre reflexão estética e social, o novo livro de Guilherme Wisnik procura configurar a matriz estética de uma sociedade que se vê como sociedade da informação, mas é marcada por uma relação estreita com a falta de visibilidade plena.

As demolições são indissociáveis de nuvens de poeira, de neblinas que marcam os espaços. Que a metáfora fundamental da sociedade da informação sejam as nuvens, eis algo que não deveria nos surpreender.

Contrariamente à tópica modernista da transparência, tão presente no uso cada vez mais constante do vidro (Mies van der Rohe é um exemplo maior aqui), e nas tentativas de conciliação entre espaço interno e externo, entre arquitetura e vida social, a contemporaneidade viu a emergência de espaços arquiteturais marcados pela opacidade —espaços que decompõem certos regimes de visibilidade que nos são quase naturais, fotografias que captam a espectralidade do tempo e as formas liminares.

Tal emergência é uma das maneiras de nosso tempo compreender que as nuvens e neblinas podem ser a representação de um mundo no qual as forças de reprodução social do capital pairam por sobre as cabeças dos sujeitos.

Mas elas podem também ser mais que isso. Pois seria o pior de todos os erros querer contrapor a incapacidade de controle das forças sociais à afirmação enfim liberta de sujeitos transparentes para si mesmos, autônomos em sua capacidade de decisão e deliberação.

Não se sai da opacidade da nossa posição de suportes dos processos de reprodução material da vida apelando à reconstrução da transparência ligada à certa noção equivocada de emancipação.

Ao falar da arquitetura dos japoneses Sejima e Nishizawa, Wisnik encontra a figura desses espaços "que transmitem um sentimento de anonimato voluntário em um mundo narcísico e exibicionista. Espaços pouco hierarquizados, diáfanos e anoréxicos, que se revelam, no entanto, de um acolhimento sedutor".

Colocações como essas lembram Theodor Adorno a insistir que a burguesia havia pensado em uma arte voluptuosa e em uma vida ascética (ao menos na época da ética protestante do trabalho).

Melhor seria defender o contrário, ou seja, uma vida voluptuosa e uma arte ascética. Pois o ascetismo da arte é apenas uma estratégia de eliminar formas de visibilidade e de sensibilidade em prol do que ainda não sabemos como ver e sentir.

Esse anonimato voluntário que certa arquitetura parece produzir em nós talvez seja uma das mais importantes estratégias de realizar a força de emancipação da arte. E devemos ao novo livro de Wisnik a compreensão disso.

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