Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo

Outro quarto, outro hotel

É mais uma viagem em que vivo a sensação de não saber onde estou acordando

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Que cheiro é esse? Será da flor que deixaram no meu travesseiro ontem, algo de que me lembro vagamente da noite passada, ao chegar exausto de um jantar que ainda faz eco —se não no meu palato, certamente no meu sistema digestivo.

Certifico-me de que não estou deitado em cima de nenhuma pétala. Então como explicar aquele cheiro forte? Estou nos primeiros momentos de um dia que talvez se anuncie pela fresta da cortina, mas nem isso é certo.

Aquarela em tons de laranja, amarelo, vermelho e verde que com representação cartográfica da Terra, desde os Estados Unidos até a Austrália. Uma pessoa de fraque e chapéu coco se equilibra ao andar sob um dos meridianos do globo
Ilustração de Maíra Mendes para a coluna de Zeca Camargo - Maíra Mendes/Folhapress

Posso estar confundindo a luz de uma alvorada com um mero reflexo líquido de uma piscina que, quando fiz o check-in anteontem, tarde da noite neste hotel, parecia consumir toda a energia da pequena cidade que resolvi visitar. Ou seria uma capital?

São as primeiras horas de sábado, 0u domingo, ou segunda, e meu corpo ainda negocia c0m meu cérebro os fusos horários para chegar a um mínimo denominador comum. Ou pelo menos num período razoável de sono que possa me fazer sentir razoavelmente descansado.

Só que não. A visão ainda está ligeiramente confusa e a radiante tela do celular só piora a nitidez do que eu tento ver no seu clarão.

São 4h15 da manhã —vai ver clareia cedo aqui neste canto do mundo.

Há uma confusão geral dos sentidos. Lá longe, um celular barato ou um rádio de pilha me oferece um pop cosmopolita. Que não bate com o registro da última refeição.

Ele traz notas de capim-limão, wasabi, cardamomo. Peixe ou camarão. Não é uma sensação indigesta, mas curiosa. Não lembro o que comi, apenas a consistência: pastosa.

E lembro também que era gostoso e, por isso mesmo, o que tento descrever não é um desconforto, mas um agradável prazer efêmero, como a música que ouvi na rua ao voltar do restaurante, quando meu motorista ignorava a sinalização e, no final da corrida, até mesmo o valor que indicava o taxímetro.

Talvez eu tenha chegado de tuktuk. A confusão é menos por conta do que bebi ontem —cerveja, saquê, outra aguardente local?— e mais pela fadiga que, por enquanto, está ganhando. Mas aí uma caixa que está numa cadeira perto do banheiro desfia o sono que estava quase me levando. O que é aquilo que sai dela? Um tecido feito num tear manual? Uma figura de teatro de sombras recortada em couro curtido? Flores secas que comprei no passeio de barco?

Se soubesse qual dessas memórias é a mais recente, talvez chegasse a uma reposta. Mas percebo que já não estou tão preocupado assim em ter certeza de onde estou.

É mais um quarto, de mais um hotel, numa viagem intensa que eu mesmo me propus. E que, pensando bem, eu devo ter bolado só para viver de novo essa desorientação: a de não saber onde estou acordando.

Experimentei isso inicialmente quando fiz aquela primeira volta ao mundo, em 2004. Quatro meses frenéticos em 17 países faziam com que, na transição do repouso para o despertar, eu frequentemente tivesse de me esforçar para adivinhar onde eu amanhecia.

E, longe de me sentir perdido, o que eu degustava ainda na cama era uma sinestesia memorial. Cada episódio que eu tinha vivido se comprimia e se mesclava com todas as outras lembranças da viagem. O que só me animava a partir para mais um dia.

Mas, retomando, que cheiro é esse? A imagem de um pequeno frasco com um óleo meio verde comprado numa barraca de rua começa a se formar nas minhas pálpebras. Assim como a do jantar, que provavelmente envolvia curry.

O objeto na cadeira, agora tenho (quase) certeza, é uma luminária feita à mão que comprei num mercado noturno. E a claridade da janela vem —só pode ser— da frágil lanterna da varanda negociando com os primeiros raios de sol quem é mais forte.

Ainda não posso afirmar que sei onde estou. Mas resolvo dormir mais uns minutinhos só para estar, dali a pouco, pronto para mais um dia de férias.

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