Citado no STF, aborto nos EUA teve julgamento histórico e reviravolta

Protagonista mudou de posição após decisão e morreu sem ser reverenciada

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São Paulo

Iniciada na semana passada com audiências públicas, a discussão sobre aborto no STF (Supremo Tribunal Federal) evoca uma decisão de 45 anos atrás que ainda gera debates acalorados nos EUA.

O caso Roe v. Wade ficou célebre ao liberar a interrupção da gravidez no país em 1973, mas teve desdobramentos inesperados, principalmente em relação a sua protagonista.

O julgamento é citado 15 vezes na ação em que o PSOL pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. O argumento é que as punições atuais violam direitos das mulheres, como o da liberdade, da saúde e do planejamento familiar.

Atualmente, a lei brasileira só libera a interrupção da gravidez se ela resulta de estupro ou gera  risco para a mãe, ou em caso de feto anencéfalo. 

Nos EUA da “era pré-Roe”, como é chamado o período anterior à histórica decisão de 1973, cada estado podia ter uma sua lei sobre o assunto. 

No Texas, o aborto só era permitido para salvar a mãe. Era ali que vivia Norma McCorvey, de 25 anos. Abandonada na infância pelo pai, criada por mãe alcoólatra, abusada na infância e com passagem por reformatório juvenil, ela estava na terceira gravidez.

A mãe cuidava da sua filha mais velha, e o segundo filho havia sido entregue para adoção. Norma se desesperou ao saber que não poderia fazer o aborto no Texas e acabou por conhecer duas jovens advogadas à espera de um caso para levar o tema à Suprema Corte.

E assim Norma se tornou Jane Roe, seu pseudônimo no caso. Wade era Henry Wade, procurador que fez a defesa da posição do estado.

Ao analisar o processo, a Suprema Corte decidiu, por sete a dois, que não cabia ao Estado interferir na decisão da mulher de abortar até o primeiro trimestre de gestação.

No segundo trimestre, o procedimento poderia ser regulamentado e, a partir do terceiro, proibido, pois haveria possibilidade de o feto viver fora do útero.

A decisão colocou em evidência o aborto como tema demarcador de visões políticas nos EUA. As advogadas ganharam fama e tiveram a carreira marcada pelo feito.

O julgamento, porém, não serviu para Norma. O caso não foi analisado a tempo de ela suspender a gravidez, e seu bebê foi entregue à adoção.

Permaneceu anônima por alguns anos até que decidiu revelar sua identidade e participar ativamente de atos de movimentos pelo direito de escolha das mulheres.

Arrumou emprego em uma clínica de aborto e, ali, protagonizou uma improvável reviravolta. Após conhecer cristãos que protestavam pelas atividades que aconteciam no local, aproximou-se do grupo, em um processo que culminou com seu batismo na piscina de uma casa de Dallas. 

Cristã, tornou-se ativista contra o aborto, tentou anular seu caso na Suprema Corte, sem sucesso, e acusou Barack Obama de assassino de bebês.

Morreu em 2017 sem grandes homenagens de nenhum dos lados. Já seu pseudônimo voltou a ser citado no atual momento em que se discute no país a nova configuração da Suprema Corte. Um eventual viés mais conservador pelas indicações de Donald Trump poderia formar uma nova maioria sobre o assunto.

Essa, aliás, é uma lição que se pode extrair do caso para o Brasil, diz Thomaz de Andrade Pereira, professor de direito da FGV Rio.  Ele explica que, seja por outros casos, ou por questões morais e tecnológicas, a visão dos tribunais dos EUA sobre o tema já sofreu algumas mudanças depois de Roe v. Wade.

A divisão entre os trimestres, por exemplo, acabou sendo revista à medida que a medicina avançou e, com aparatos, o feto se mostra viável antes do último trimestre. Enquanto não houver consenso social, não deve ser diferente com o julgamento atual no STF, afirma Pereira.

A depender da decisão,  mais embates devem surgir com novas ações judiciais ou com o debate de uma eventual regulação do aborto. “A jurisprudência ensina que casos como esses são só capítulos de um debate que continua.”

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