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Arte da discussão é posta à prova no STF ao tratar sobre aborto

Audiência pública discutirá mudança nas regras sobre a interrupção da gravidez

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São Paulo

O Supremo Tribunal Federal realizará uma audiência pública na ação que defende que a atual criminalização do aborto viola preceitos fundamentais da Constituição de 1988. Na prática, a ação pode gerar a descriminalização da interrupção voluntária da gestação no país e a adoção de políticas de saúde reprodutiva.

Desde 2007, quando realizou a primeira audiência pública na ação sobre pesquisa com células tronco embrionárias, o Supremo tem incrementado as formas de participação da sociedade nos debates constitucionais, através da admissão de contribuições como amigos da corte (amicus curiae) e também com audiências públicas: esta audiência é a 23ª realizada no tribunal e já há uma outra aguardando definição de data.

Embora seja salutar a abertura do Supremo a contribuições da sociedade, as pesquisas têm demonstrado que não necessariamente essa participação se vê refletida nas decisões. Em pesquisa de doutorado que realizei, pude constatar que, não obstante o número significativo de organizações amici curiae no Supremo (mais de 2.000 em 15 anos de previsão legal), os ministros não se sentem compelidos a enfrentar os argumentos ali colocados ao decidir.

No mesmo sentido, pesquisa de mestrado de Lívia Guimarães sobre as audiências públicas concluiu que grande parte delas já realizadas carecem de uma estrutura e organização que levem à sério a sua função dialógica e fomentadora do debate público. Isso mostra que há muito espaço para aprimorar essas formas de participação da sociedade no processo constitucional.

Porém, mesmo que não seja possível estabelecer o impacto que amicus curiae e audiências públicas têm nas decisões, é inegável reconhecer que essa mobilização social entorno de uma ação constitucional retrata, de certa forma, o “estado da arte” da discussão sobre a descriminalização do aborto no Brasil. 

O que se verá na audiência pública, a partir dos expositores habilitados, é um embate bastante clivado entre, de um lado, organizações de direitos humanos, de saúde e assistência jurídica e, de outro, organizações religiosas.

O movimento pela vida das mulheres levou ao STF a perspectiva de que a decisão de ter filhos compete a quem vai gestá-los e criá-los, e se refere ao projeto e às condições de vida de cada mulher, e não do Estado. A defesa do direito de escolha da mulher sobre seu corpo é corroborada pelo impacto da maternidade em sua vida: é direito da gestante decidir ter ou não o filho, o que gera um dever para o Estado, de apoio ao planejamento familiar e na criação de políticas públicas de saúde reprodutiva.

O movimento pela criminalização do aborto, por sua vez, levou ao tribunal os argumentos de que a vida é inviolável desde a concepção para a maior parte das religiões e de que os valores da comunidade devem ser levados em consideração na decisão do tribunal. Por esta perspectiva, o Estado laico brasileiro não poderia decidir em favor da gestante porque estaria desrespeitando a liberdade religiosa das pessoas que são contra a interrupção voluntária da gestação.

Instituições públicas também foram chamadas a se pronunciar: o Ministério da Saúde deve levar ao tribunal os dados sobre mortes maternas decorrentes do aborto inseguro, as Defensorias Públicas apontarão as violações nos processos de criminalização e a seletividade com que o crime de aborto é tratado no Brasil.

Todas essas razões serão expostas na ação, que já conta com o maior número de amicus curiae oferecidos na história do tribunal. A audiência convocada pela ministra Rosa Weber, relatora a ação, também é maior já realizada em número de expositores.

Muitos são críticos de que esse intenso embate de ideias se dê no âmbito do Judiciário, e não do Legislativo. Porém o que se observa há anos é o que o Legislativo não tem se mostrado capaz de fazer valer os direitos das mulheres, sendo omisso ao não promover uma necessária revisão do crime de aborto previsto no Código Penal de 1940 à luz dos preceitos constitucionais fundamentais de 1988.

É justamente por esta razão que o Supremo se debruça sobre o tema, enquanto instância contramajoritária, para fazer valer a Constituição, ainda que tardiamente, a todas as mulheres.

Eloísa Machado

Advogada do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) e professora da FGV Direito SP

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