Descrição de chapéu
Jairo Marques

Não vacinar uma criança é contar demais com a clemência do acaso

Vírus foge pela janela, pela fresta da porta e atinge o menino do vizinho que, num fenômeno raro, pode ficar doente mesmo que tenha sido vacinado

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São Paulo

O vírus da poliomielite invade frágeis corpos de bebês e de crianças pequenas com um objetivo muito claro: matá-las devagarinho, de maneira agonizante. Quando não logra êxito, em casos raros, deixa para trás estragos comparados ao rastro de furacões raivosos, com a diferença de cravar marcas que não se reparam com um reboco na parede ou um ajuste no telhado.

Contraí a paralisia infantil em meados da década de 1970, quando a doença teve um de seus picos no país. Havia pouca informação, eu morava num ermo de mundo e as campanhas não eram ostensivas como são hoje.

Agente de saúde da Prefeitura de São Paulo vacina criança - Rafael Hupsel - 25.ago.18/Folhapress

Nada disso justifica, mas ameniza de alguma forma as perdas irreparáveis causadas em minha estrutura muscular, óssea, neural e, sobretudo, emocional e familiar.

E hoje? O que leva uma família a não vacinar seu filho diante de uma oferta abundante de detalhes a respeito das consequências da infecção, de uma sucessão de chamados públicos para épocas de imunização, de as gotinhas chegarem em todos os pontos do Brasil, seja de charrete, seja de voadeira?

Até hoje, o poderoso vírus da pólio cobra sua fatura de mim —com dores posturais e perdas ósseas e musculares— como que se me lembrasse de nunca esquecer seu poder.

Uma maneira recente que ele encontrou de me atazanar é especialmente palpitante: minha filha, de quatro anos, especula em detalhes a minha condição, meio que entendendo minhas diferenças, meio que se condoendo pelas limitações do papai. "Pai, por que essa sua perninha não mexe quando a gente dança?".

Quando brincamos de cavalinho, tenho eu de incrementar o lúdico de tal maneira criativa e narrada que ela não sinta tanto a falta de solavancos muito altos no ar, a falta de voar —cavalinhos atualmente são alados tipo "My Little Pony", com glitter— com alguma verossimilhança.

Se fosse possível acuar a doença para que ficasse restrita a um só organismo, a uma só casa, a um só grupo social antivacina, eu jamais teria a "cachorra", como diria uma tia minha que já morreu, de externar essas ideias e respeitaria a liberdade de ser idiota das pessoas.

O problema é que o vírus foge pela janela, pela fresta da porta e atinge o menino do vizinho que, num fenômeno raro, pode ficar doente mesmo que tenha sido vacinado. A recirculação do vírus da pólio em um ambiente em que a taxa de imunização da população não está perto dos 100% pode provocar uma catástrofe.

Não desdenho da minha condição física e da minha oportunidade de ter sobrevivido e de ser uma pessoa com deficiência. Muito pelo contrário, tenho uma oportunidade histórica de fazer algo por mais empatia, respeito e oportunidades a esse grupo feito minoria.

Dito isso, entre optar pela firme e segura proteção de um "​serumano" contra uma fatalidade orgânica de grandes proporções ou lançá-lo à sorte da clemência do acaso por uma atitude integralmente tosca, não são necessários mais verbos de argumento: vacinem suas crianças.

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