Medo une bairros rico e pobre em Fortaleza após motim da PM

Em região de maior IDH, temem-se assaltos e violência; na de menor, agentes são temidos

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Fortaleza

O apagão de policiamento durante o motim de 12 dias da PM no Ceará fez explodir o número de roubos, furtos e assassinatos.

No bairro mais rico de Fortaleza, o medo levou moradores a evitarem sair de casa para driblar os criminosos que roubavam à mão armada em plena luz do dia. Já no mais pobre, não houve escolha: a violência fez de escolas a igrejas fecharem e impôs uma espécie de toque de recolher. Por lá, a volta da polícia ao trabalho não é sinônimo de segurança.

Logo após o fim da paralisação, a Folha esteve no bairro Conjunto Palmeiras, que tem o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da cidade, com pontuação de 0,119. Também visitou o bairro Meireles, com o melhor IDH, 0,953. A classificação vai de 0 a 1. Os dados são do IBGE, de 2010.

Nos dois bairros, a presença da PM ainda era tímida e o Exército já não estava nas ruas —mesmo que o presidente Jair Bolsonaro tenha determinado o fim da operação só um dia depois, na quarta-feira (4).

Na orla da praia de Meireles, a clientela sumiu dos quiosques, diz um casal dono de um deles. Eles —que tiveram os nomes trocados a pedido nesta reportagem—, calculam que o lucro caiu pela metade. “Quem vai vir para um estado com toda essa violência, com tanto roubo? A gente depende do turismo. Antes, tinha praia cheia, agora estamos às moscas”, diz Sílvia Ramos, 47.

Prédio de dois andares pintado de cor de rosa no qual roupas pendem das duas janela para secar ostenta  a pichação, no piso inferior: "Ao entra tire o capacete e abaixe os vidro"
Pichações de facções no bairro Conjunto Palmeiras, em Fortaleza, onde sensação de medo persiste após fim de motim da PM - Jarbas Oliveira/Folhapress

No dia em que a polícia parou, quem estava por lá diz ter visto homens pichando muros com as letras da facção cearense GDE (Guardiões do Estado).  

E, mesmo com o Exército a uma quadra dali, os donos da barraca viram assaltos violentos. Num deles, “puxaram e arrastaram a mulher pelos cabelos para conseguir arrancar o cordão, tirar a bolsa, levaram tudo”, diz Sílvia.

“Eles [os criminosos] sentavam aqui na mesa [da barraca] para usar crack, maconha. Pediam comida à beça e no final não pagavam. A gente vai fazer o quê? Vai correr para onde? Ligar para quem?”, diz Márcio Ramos, 45.

Naquela manhã, o casal de aposentados Adilson Soares, 68, e Maria da Glória, 68, caminhava pela orla de frente ao apartamento em que moram há cinco anos, desde que vieram do Rio de Janeiro.

A sensação dos dois é que a segurança piorou no período. “Mas também, tem gente que quer ostentar. Com cordão de ouro, celular de primeira linha. Eu venho caminhar sem nada, até o documento é xerox”, diz Adilson.

A professora aposentada Iolanda da Costa, 79, que vive no bairro há 28 anos, não saiu de casa durante o Carnaval. “Nós, idosas, não podemos usar nem uma bolsa, um brinquinho bonito. Tem que ter muita fé em Deus. Torço para os bandidos se converterem”, diz ela.

Iolanda culpa o governo de Camilo Santana (PT) pela piora da violência e elogia a ajuda  enviada por Boslonaro.

Já no Conjunto Palmeiras, conhecido por ser o bairro onde nasceu a GDE, às 19h já havia uma espécie de toque de recolher. Nas paredes o aviso é claro: “Ao entra tire o capacete e abaixe os vidro [sic]. Ou então vai levar bala”.

No Ceará, além da GDE, há o CV (Comando Vermelho) e, em menor número, o grupo paulista PCC (Primeiro Comando da Capital), aliado do primeiro grupo, e a amazonense FDN (Família do Norte), que se une ao segundo.

Por ali, entrevista só com a promessa de que suas identidades não serão relevadas.

A área onde está o Conjunto Palmeiras foi a segunda da cidade com mais homicídios em fevereiro: 23 assassinatos, todos com arma de fogo. Já na região do Meireles foram seis.

Também é o bairro com o maior número de pessoas em situação de extrema pobreza. A renda média mensal é de R$ 239,25. No Meireles, os moradores ganham em média 14 vezes mais: R$ 3.360, segundo o IBGE.

Após um assassinato em frente a um colégio, várias escolas começaram a suspender aulas por lá. Até igrejas cancelaram missas e cultos à noite.

Foi a primeira vez também que os moradores viram o supermercado local fechar as portas. “Esse mercado nunca fecha, nem com enchente nem quando o depósito pegou fogo”, diz a administradora Marcela Moraes, 35, que vive no Conjunto Palmeiras desde 2002. “Antes [do motim], existia um certo respeito. Agora, eles não estão respeitando nem dentro da favela.”

A volta da polícia, no entanto, não é sinônimo de segurança, mas de medo. “A gente não tem relação com a polícia. Não se sente protegido também, com as abordagens violentas, tiroteios”, diz Marcela.

No conjunto José Euclides, do Minha Casa Minha Vida, próximo do Palmeiras, o primeiro dia de volta da PM foi de truculência. Era 13h de segunda-feira (2) quando os agentes invadiram o prédio para cumprir um mandado de prisão, ameaçaram os moradores e arrombaram apartamentos.

“As políticas de segurança do Camilo Santana só aumentaram as ações truculentas da polícia. A polícia na avenida Beira Mar é diferente da que está na periferias, que bate, mata”, diz a servidora pública Adriana de Almeida, 48.

Adriana compara o ocorrido com os dias em que as facções pararam o Ceará, em janeiro de 2019, em represália a mudanças feitas pelo governo estadual nas penitenciárias. “Eles queimaram ônibus, tocaram o terror, mas as mortes caíram. Agora, não, foi uma matança.”

O local vive intensa disputa entre as facções. Mas, desta vez, na periferia multiplicam-se os relatos de que homens encapuzados teriam sido responsáveis por parte dos assassinatos, o que não é prática dos criminosos faccionados. A desconfiança dos moradores seria de que policiais estejam envolvidos.

Integrantes da cúpula da segurança pública trabalham com a hipótese de que, durante o motim, houve recrudescimento nas disputas por território e acertos de contas, mas não descartam que possa ter envolvimento também de grupos de extermínio com policiais da ativa e da reserva.

A PM fala em cerca de 200 agentes parados durante 12 dias, mas policiais dizem que houve colegas que apoiaram sem se amotinar, mas também sem trabalhar efetivamente.

Os homicídios aumentaram 178% em fevereiro, quando comparado com 2019. Foram 456 assassinatos contra 164 de fevereiro de 2019. O índice foi alavancado pelos 12 dias de motim. De 19 de fevereiro a 1º de março, foram registrados 312 homicídios.

Os roubos cresceram 95%, com 6.507 ocorrências do tipo registradas. Já os roubos de carga, a residência, de veículos e de bancos foi ainda maior: 168,3% a mais do que no ano passado, ou 1.280 casos.

Os furtos subiram 15% em relação a fevereiro de 2019, com 4.902 casos, segundo a Secretaria de Segurança Pública.

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