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Marina Ganzarolli

É comum que vítima vá para banco dos réus, como mostra audiência de Mariana Ferrer

Estupro culposo não existe no Direito, mas existe no imaginário da sociedade

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Marina Ganzarolli

Advogada, pesquisadora, cofundadora da Rede Feminista de Juristas (deFEMde) e idealizadora do movimento Me Too Brasil

As imagens da audiência de um processo penal que começou como estupro de vulnerável e terminou em absolvição por falta de provas movimentaram as redes sociais.

As posturas –incompatíveis com a profissão– do advogado de defesa Cláudio Gastão da Rosa Filho ao humilhar, desmoralizar e constranger a vítima, bem como a omissão do promotor de justiça Thiago Carriço e do juiz Rudson Marcos, mostram, na verdade, a realidade de muitas das audiências de violência sexual no Brasil, em que há uma inversão de papéis: a vítima é quem acaba sendo colocada no banco dos réus.

O acusado –cujo comportamento de fato deveria estar sendo questionado– é André de Camargo Aranha.

Ato em defesa de Mariana Ferrer em Florianópolis, em setembro
Ato em defesa de Mariana Ferrer em Florianópolis, em setembro - Eduardo Valente - 15.set.20/iShoot/Folhapress

Não tive acesso integral aos autos, mas lendo a decisão, alguns pontos causam estranhamento. A denúncia começa como estupro de vulnerável, mas no curso do processo o promotor é trocado — aparentemente por questões processuais naturais.

O novo promotor designado, Thiago Carriço, passa então a pedir a absolvição de André de Camargo Aranha, algo que, nos crimes em geral, é bastante incomum por parte do Ministério Público, que infelizmente em muitos casos parece estar mais interessado na condenação do que na promoção da Justiça.

Mas quando estamos falando de violência sexual, diferentemente de todos os outros, a conversa muda de figura e é até comum o Ministério Público pleitear a absolvição. O laudo toxicológico da vítima é negativo para várias substâncias, ao menos as mais usuais.

Porém, a maioria delas possui uma meia vida extremamente curta, ou seja, do momento em que ela alega ter sido drogada até a realização do exame é possível que a droga não fosse mais detectável. Pelo que se pode inferir da sentença, não houve produção de laudo técnico neste sentido, que questionasse este laudo inconclusivo, já que ele é incompatível com o depoimento das testemunhas de que Mariana estava de fato “alterada”.

A expressão “estupro culposo” foi utilizada por jornalistas para descrever o que no processo foi na verdade sustentado pelo Ministério Público como “erro de tipo essencial”. Estupro culposo certamente não existe.

Isso significa dizer que não há um crime com esta tipificação no Código Penal brasileiro, ou seja, ele não existe enquanto categoria jurídica.

Como explica a antropóloga Beatriz Accioly ele existe sim enquanto metáfora social, uma forma de uso da linguagem que inclusive foi largamente utilizada nas redes sociais tanto no caso Robinho jogador de futebol com contrato suspenso pelo Santos, quanto no caso Prior, participante de reality show.

A figura pode não existir para o Direito Penal, mas existe sim, no imaginário da sociedade. As figuras da “mulher honesta”, ou mesmo da “legítima defesa da honra” ainda são muito presentes, ainda que não sejam mais amparadas pela lei, por exemplo.​

Não à toa, o crime de estupro tem baixa notificação, devido ao medo de retaliação por parte do agressor, receio das vítimas do julgamento e constrangimento, e falta de confiança nas instituições.

Mas o que faz com que uma mulher não denuncie ou demore a denunciar a violência? Pesquisas nos Estados Unidos demonstram que esta resposta é complicada, mas os motivos não se restringem aos estadunidenses.

Eles incluem a complexidade desse tipo de conduta (na maioria das vezes envolvendo entes queridos), a culpabilização da vítima, o estigma de ficar tachada como “a garota estuprada”, a desconfiança –mais que justificada– do sistema, a falta de compreensão sobre como a neurobiologia do trauma funciona, explicando o comportamento comum de congelamento da vítima e também os relatos muitas vezes contraditórios, e o sentimento de impotência diante de um agressor influente.

A violência sexual geralmente não é revelada a ninguém por muitos anos. Algumas pessoas podem nunca revelar. Quando isso acontece, normalmente é um processo, não um evento único.

Um dos principais motivos para isso é aquilo que chamamos de culpabilização da vítima. Ao invés de buscarmos no comportamento do agressor sinais que endossem a versão da vítima, buscamos no comportamento do agressor sinais –normalmente ligados à moral e aos bons costumes– que justifiquem a agressão.

Esse processo também gera sentimento de culpa na pessoa que fez a denúncia, que passa por revitimização: uma segunda violência, às vezes mais dolorosa e traumatizante que a primeira, cometida por agentes públicos que deveriam protegê-la, acolhê-la e escutá-la.

O cenário só é possível graças à cultura do estupro, em que a violência sexual contra mulheres é normalizada na mídia e na cultura popular.

É bom lembrar que tanto a advocacia quanto o Ministério Público e o Judiciário possuem profissionais de excelência no enfrentamento da violência sexual. Mas não é o suficiente.

Há luz no fim do túnel, no entanto. A mobilização desta terça deixou isso evidente: o maior controlador externo dos abusos de autoridade cometidos dentro ou fora da Justiça é a opinião pública.

Mariana Ferrer pode ter acesso a um julgamento justo. Na história do Brasil, o curso de um julgamento em que uma mulher foi vítima de assassinato pelo companheiro, o rico e influente Doca Street, foi alterado graças à mobilização pública em 1976. André Camargo Aranha pode ser o Doca desta geração. Depende de cada um de nós.​

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