Neste Finados, muitos reverão quem morreu sem despedida

Espero por algo que abrande gritos, dores e saudades que ainda pulsam

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Osmair Camargo Cândido (Fininho)

sepultador no Cemitério da Penha (São Paulo)

Eu mesmo abro o cemitério em uma situação inédita. A pandemia fez muitas vitimas que para cá vieram. Por esses portões, passaram muitas pessoas. Passaram flores, peças ensaiadas, tristeza, e as dores daqueles que aqui deixaram seus queridos parentes, conjugues, filhos e amigos.

Nesta segunda (2), poderão aproximar-se um tanto da sepultura [pela primeira vez após o governo estadual permitir a reabertura dos cemitérios para visitação], ainda que mantendo o distanciamento social. É perceptível aqui o odor da parafina, das velas e dos cânticos entoados desde o cruzeiro das almas.

Este é o primeiro Dia de Finados após os dias de pico da pandemia. Dias envoltos em tristeza e marcados pela dor e pelos gritos que chegavam antes dos caixões e se enfileiravam como carros em um estacionamento. Apanhávamos os corpos, ainda na calçada e de longe vimos as pessoas em total desespero gritando contra a morte. Gritando contra tudo e contra todos.

Dezenas de lápides brancas em terra fofa
Sepulturas no cemitério Vila Formosa, na zona leste de São Paulo - Mathilde Missioneiro-24.set.20/Folhapress

Seguíamos com o caixão sem flores, sem preces, sem acompanhantes. Mas, os gritos permaneciam do lado de fora. Mais de uma vez vi mãe agarrando-se ao caixão do filho. Narrando a vida de ambos e imersa em profunda dor.

Mal ela compreendia o que estávamos fazendo. Nenhuma dor envelhece. Ela permanece viva pulsando dentro de quem a sente. E de certo modo, em quem atenta para essa pulsação.

É impossível presenciar cenas como essas e não se envolver. Não se sentir pego pelas teias da emoção. Frescas essas memórias, rutilam por minhas noites. Gritos e imagens daqueles dias ecoam hoje, como um eterno retorno.

O curioso é que os cemitérios no Brasil tiveram origem em ordens religiosas. Eles cresceram após a secularização e passaram por profundas reformas.

Os rituais religiosos no Ocidente, para a maioria da população, têm início antes mesmo da adolescência. Seguem-se casamento, extrema unção e a encomenda do corpo.

E, no auge da pandemia, o mais triste foi perceber que a essência dos enterramentos não se fizeram presentes.

Os rituais foram impedidos por cautela. Para evitar o contágio [pelo novo coronavírus]. Mas, depois de enterrados, não veio nenhum religioso, de qualquer ordem, para erguer as preces.

Entendo que, na América do Sul, esses rituais são de capital importância. Trata-se da transição do mundo físico para outro plano. Rituais de morte são de grande importância, pois fecham um ciclo. É uma espécie de direcionamento. Ou seja, viveu, praticou esta fé, por meio de seu fundamento, para ele e os seus.

Bom seria se cada um de nós tomássemos consciência do possível. Ou seja, fizéssemos acontecer a melhora, sem contornar a tragédia. Enfrentássemos o que temos e como que podemos.

Em data de grande visitação como esta, um dos focos de observação são as flores. Algumas coloridas, outras singelas, outras importadas.

Também há ditos sobre falecidos famosos. São atores, esportistas, artistas, gente de cinema, cientistas e músicos. Muitos vão ao túmulo para dar pitacos sobre epitáfios.

Para lembrar, anotam em papel número de terreno, sepultura, quadra, ossuário.

Entretanto, a saudade e a dor não têm sepultura. Elas não podem ficar sob a memória. Ambas pulsam na maioria dos visitantes. Com elas, a maioria chegou e com elas retornarão.

Como a eletricidade, a saudade e a dor não são alcançadas pela visão. Mas podem ser percebidas. Não se necessita tocá-las para saber. E elas são transmissíveis.

Um grande poeta disse em sua obra que “em cada experiência, se aprende uma lição”. Até o presente, muitos de nós apresentou números, gráficos e projeções.

Eu espero por algo que ao menos abrande os gritos, as dores as saudades que pulsam de modo ainda tão dolorido em nossa gente.

Mesmo quem não viu de perto tanta tristeza, tantas mortes, se sentiu também afetado por elas.

Neste dia 2, o campo santo está aberto, recebendo os visitantes. O momento propicia reflexão sobre o que tem alto preço e o que tem alto valor.

Qual é o sentido da fé durante tragédias como esta que estamos enfrentando?

Existem meios de humanizar os enterros emergenciais como os desta pandemia?

Às vezes, tenho a impressão de que nasci em um país que mais procura e encontra culpa do que acha solução.

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