Descrição de chapéu cracolândia

Com pandemia, cracolândia em SP vê menos doações e mais tensão com polícia

Sem serviço municipal, dependentes químicos chegam a beber e tomar banho com água de poça

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Guardas civis metropolitanos prendem suspeito de ter furtado um celular, na estação da Luz, no centro de São Paulo, e inflam usuários da cracolândia Bruno Santos/Folhapress

São Paulo

Quinta-feira, 10 de junho. Um homem maltrapilho caminha da estação da Luz em direção ao fluxo da cracolândia, na alameda Cleveland, região central de São Paulo. Na esquina, quatro guardas civis metropolitanos o detêm e o derrubam. Dois o seguram no chão, com a barriga colada no asfalto. Um deles força o joelho contra a parte de trás de seu pescoço. A cena remete ao caso George Floyd, nos EUA, mas não termina em morte.

A violência da ação contra o suspeito de furto irrita os dependentes químicos, enquanto guardas cercam o local munidos de revólveres e bombas de gás. O clima tenso entre os frequentadores da cracolândia e as forças de segurança não é caso isolado. Tem sido constante nos últimos meses, especialmente durante a limpeza das ruas.

A truculência dos agentes levou a Promotoria dos Direitos Humanos a abrir uma ação civil pública para tentar impedir a atuação da GCM como força policial na cracolândia.

No meio da pandemia, esse não é o único problema para os usuários de drogas da região. Eles viram diminuir a ajuda de voluntários e as doações de itens básicos que costumavam receber. Em parte por causa do coronavírus, em parte por receio da polícia.

O que não diminui são os números da cracolândia. Passam por ali 2.000 pessoas diariamente, quase a mesma quantidade estimada em 2012. A diferença é que, agora, o total é aferido por um drone.

Mais recentemente, a tensão maior é entre os traficantes e a Polícia Civil. Segundo relatos, policiais corruptos têm aumentado o achaque aos criminosos, ligados ao PCC (Primeiro Comando da Capital).

Teria sido esse o motivo dos disparos contra uma viatura no dia 3 de junho, feriado de Corpus Christi. Recebidos com tiros e pedras, os agentes pediram reforço da GCM e da PM. A ação terminou com fechamento de um terminal de ônibus e o desvio de 28 linhas do transporte coletivo.

A contradição é visível: o policiamento constante e ostensivo não inibe ações criminosas e nem a sensação de insegurança de comerciantes, moradores e transeuntes.

Usuários de drogas também relatam aumento da pressão para deixarem o local por causa das obras feitas no entorno do projeto de revitalização da Luz. Por lá, foram erguidos prédios, parte de uma parceria público-privada de habitação popular, e está em obras a nova sede do hospital Pérola Byington.

Antigos albergues que serviam de moradia para parte dos frequentadores da cracolândia foram desapropriados e concretados e devem ser demolidos. O serviço municipal mais próximo dos usuários, que ficava na rua Helvétia, chamado de Atende 2, foi fechado e derrubado no início da pandemia.

Houve também uma debandada do voluntarismo, conta o pastor Rica, do projeto Da Pedra para a Rocha. Durante a pandemia, ele diz que tirou 500 pessoas do vício, distribuiu 2,2 milhões de refeições e 50 mil máscaras.

"Caíram as doações, mas na cracolândia não existe Covid-19, as pessoas seguem lá. Doenças comuns, como tuberculose e pneumonia, têm sintomas como do coronavírus e ninguém queria chegar perto. Sem o serviço municipal, faltou o saneamento básico. Vi pessoas bebendo água de córrego, tomando banho em poça de água. Minha caminhonete virou Samu inúmeras vezes", conta.

Ele diz que sofre pressão e já ameaçaram fechar o projeto. "Tentam nos associar ao tráfico, mas eu não sou do crime nem da polícia, eu estou lá para ajudar, seja quem for. Não quero saber o antecedente criminal de ninguém", afirma.

Outra voluntária que já foi pressionada dessa forma é a produtora Giulia Grillo. "Os moradores do prédio me chamam de 'madrinha do tráfico'. Vieram me perguntar quanto eu estava ganhando, me acusaram de defender os traficantes", conta.

No ano passado, guardas civis também a levaram para a delegacia para que explicasse sua relação com o crime organizado. "Tentaram, fizeram de tudo para me associar ao tráfico, mas não conseguiram", diz ela, que também viu as doações caírem por lá.

"Quando começou a pandemia, praticamente todos se afastaram. Na primeira semana de lockdown, vi o Pastor do Pão distribuir pão duro em fatias", conta, sobre outro voluntário que está sendo ameaçado por filmar ações da polícia.

Para a psicóloga Beatris Dotta, que pesquisa a região, "é um momento tenso, como se todo mundo fosse suspeito. Estão só esperando um fósforo para riscar". Na sua opinião, a diminuição do atendimento público gerou ainda mais vulnerabilidade.

"As operações diárias estão mais agressivas e as pessoas mais expostas a condições indignas. Isso vai retroalimentando o ciclo de violência", diz.

"Está virando o fluxo direto. Você tenta fazer eles saírem para limpar e começa a confusão, nem triagem está tendo [revista na qual os agentes pegavam itens dos usuários em busca de drogas]", relata, sem se identificar, um Guarda Civil Municipal, sobre a agressão também do lado dos frequentadores da cracolândia. Ele trabalha no local em dias alternados. "Se fosse todo dia já tinha infartado."

Segundo o promotor de Justiça de Direitos Humanos Eduardo Ferreira Valerio, um dos que assinam a ação civil pública contra a atuação da GCM na cracolândia, a tensão oscila. "Ora arrefece, ora agudiza. Agora começou a piorar, mas enquanto não houver solução estrutural, uma política pública com início, meio e fim, vai ser assim", afirma.

Na última década, foram vários projetos para a região com diferentes abordagens: “Nova Luz”, “Braços Abertos”, “Redenção”, “Redenção Fase II” e “Redenção Fase III”. Sem continuidade entre eles, foram pouco eficientes. O que, segundo o MP, é uma "tentativa e erro com seres humanos e gasto de dinheiro público".

"Vimos que ela [a GCM] não age só quando é provocada, mas também provoca conflitos e usa estratégia militar de conquista de espaço urbano, como se fosse uma guerra. Um claro desvio de finalidade", afirma o promotor.

Procurada, a Prefeitura de São Paulo, sob gestão de Ricardo Nunes (MDB), afirmou que atua na região da Luz com abordagem multidisciplinar aos usuários de drogas.

Informou, em nota, que a unidade do Atende 2 foi fechada porque o projeto está em processo de transformação para equipamentos do SIAT 2 (Serviço de Acolhida Terapêutica). O espaço da rua Helvétia, no meio da cracolândia, foi transferido para o Glicério, a 2,5 quilômetros dali.

No local original, será construído mais um prédio de moradia social da Parceria Público-Privada.

A gestão informa também que distribui diariamente na região da Luz 1.000 refeições (500 almoços e 500 jantares), que foi instalado um banheiro na praça Júlio Prestes e que realiza abordagens diárias aos usuários por meio de seis equipes compostas por médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos.

A Secretaria Municipal de Segurança Urbana disse que a GCM está presente na região "apoiando as ações das demais políticas públicas, protegendo agentes e equipamentos públicos, auxiliando no policiamento comunitário e preventivo, exclusivamente". Também afirmou que não foi notificada sobre a ação civil pública do MP.

Já a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP), sob gestão de João Doria (PSDB), informou que a Polícia Militar, quando acionada, apoia as ações da GCM e da prefeitura na região da Luz, mas não respondeu a acusação de corrupção dos agentes da Polícia Civil.

"O policiamento no local é realizado por meio dos programas preventivos e ostensivos da PM, sendo reorientado de acordo com a análise dos indicadores criminais", disse, em nota.

De acordo com a pasta, nos quatro primeiros meses do ano, em comparação com o mesmo período de 2020, as ações das polícias Civil e Militar na região resultaram em queda de 55% nos roubos e 67% nos furtos na área do 3º DP (Campos Elíseos).

Em 15 meses, ainda segundo a SSP, foram presas ou apreendidas 774 pessoas, além de 3,3 toneladas de drogas, 78 armas brancas e de fogo, munições de diferentes calibres, apetrechos para a comercialização de drogas e R$ 275 mil.

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