Cidades viram 'telas em branco' para projeções em protestos sobre a pandemia e contra o governo

Com a quarentena, a projeção de imagens tomou conta de diversas regiões de São Paulo, do centro à periferia

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São Paulo

Fachadas de prédios, empenas cegas e outros elementos arquitetônicos passaram a figurar como telas em branco para imagens de naturezas políticas e sociais. Esse tipo de expressão ganhou força em um momento em que as manifestações políticas são retomadas, agora contra medidas do governo Bolsonaro na pandemia de Covid-19.

Qualquer superfície de concreto ou alvenaria na paisagem da cidade pode ser usada para a projeção de imagens, como aconteceu no Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, no mês passado, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em trabalho assinado pelo VJ Boca. A Torre de Londres, na capital inglesa, acabou servindo de suporte para que um coletivo imprimisse o trocadilho Jail Bolsonaro (“prendam Bolsonaro”), no mesmo dia em que a marca de 500 mil mortos por Covid-19 foi registrada no Brasil, em 19 de junho.

Em São Paulo, essa mesma combinação de mídias (arquitetura e fotografia, numa relação semelhante à de tintas e muros usada por grafiteiros) teve forte presença em raves e casas noturnas paulistanas há 20 anos. Para profissionais que deram impulso a esse movimento, o uso de projetores passa agora por uma popularização de preços, com equipamentos mais baratos.

A favela aderiu ao formato, dando voz a autores que calcificaram a natureza político-social de projeções. “Muita gente hoje pode projetar algo de sua própria janela, jogando imagens nas edificações vizinhas”, diz o VJ Spetto, que durante os panelaços contra Bolsonaro no ano passado saía de carro com o projetor a tiracolo. O artista ia jogando a projeção de imagens em edificações, e até fachadas com vidros refletiiam o conteúdo elaborado por softwares e armazenados em computadores.

Imagem projetada pelo VJ Alexis em São Paulo
Imagem projetada pelo VJ Alexis em São Paulo - Divulgação

No início do ano passado, Spetto projetou sobre edifícios de São Paulo a frase “Era só uma gripezinha”, em referência a uma fala de Jair Bolsonaro que minimizava a periculosidade da Covid-19, responsável pela morte de mais de 520 mil em todo o país. “Esse é o nosso panelaço”, diz.

Com as quarentenas e as medidas de isolamento social impostas pela pandemia, a projeção de imagens tomou conta de diversas regiões de São Paulo, do centro à periferia. “A gente viu uma explosão desse fenômeno no último ano”, diz Alexis Anastasiou, fundador da Visualfarm, estúdio que se dedica à produção de vídeos. Ele já fez projeções em cartões-postais de São Paulo, como o Masp, e durante a pandemia sua principal plataforma foi a janela de casa.

Na periferia tem se destacado o Coletivo Coletores, formado em 2008 entre o bairro de São Mateus e São Miguel Paulista, na zona leste, por Toni Baptiste e Flávio Camargo – Seres —que compôs seu nome artístico assim, acrescentando o hífen e a palavra “seres”.

“O trabalho se dá quase sempre na rua, nos espaços abertos. A colaboração com a comunidade é uma via de mão dupla, quando ela cede espaços para a gente poder trabalhar”, diz, em menção aos espaços entre as casas de favelas, nas ocupações de imóveis desvalorizados ou ocupados por movimentos sociais, como o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).

A dupla trabalhar fundamentalmente sobre um tema que chama de “apagamentos de memórias”, projetando imagens de personalidades ou cenas que, na avaliação deles, tiveram suas notoriedade reduzida num contexto de exclusões históricas.

A partir de 2014, os dois passaram a valorizar em sua atividades a videoprojeção. "Fazemos o que chamamos de picho digital. Grafitando, escrevendo nas empenas, mas buscando espaços que não eram apenas nas regiões centrais de são paulo, mas nas comunidades, em espaços mais inacessíveis."

Um exemplo citado por Seres é um retrato da escritora negra Maria Carolina de Jesus. "Por muito tempo ela permaneceu submersa, com uma produção importante de escrita e de fala. Agora tem tido mais reconhecimento, mas ainda muito pouco diante de outras escritoras brancas", diz o artista e ativista. A imagem da autora foi projetada em prédios na praça Roosevelt, na região central de São Paulo, e integrou ações do movimento Vozes contra o Racismo, projeto da Secretaria Municipal de Cultura realizado no ano passado.

A Folha localizou o coletivo que imprimiu na Torre de Londres a imagem de Bolsonaro com a frase Jail Bolsonaro, o Projections On Walls. Ele é formado por ingleses que trabalharam em colaboração com brasileiros, mas que preferem ter seus nomes mantidos sob sigilo. "Eles [os brasileiros] devem permanecer anônimos devido à natureza retaliatória do regime de Bolsonaro", diz um dos participantes.

O grupo considerou a Torre de Londres o local ideal para projetar a imagem do presidente, porque o local foi "uma prisão abominável, onde torturas e castigos brutais foram executados séculos atrás". Para eles, a associação "ecoa a violência e as violações dos direitos humanos que Bolsonaro sempre defendeu".

As projeções do dia 19 de junho pelo grupo foram feitas "em solidariedade às centenas de milhares de pessoas que protestaram contra o Bolsonaro no Brasil naquele dia", na retomada dos protestos contra o governo. "Ele é um problema global e deve ser tratado como tal", diz o ativista, segundo o qual os pronunciamentos oficiais de Bolsonaro são "uma ameaça à democracia do Brasil". ​

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