Maior emergência sanitária em um século, a pandemia de Covid-19 encontrou respostas díspares entre os países, mas aos poucos uma coordenação global ganha forma, moldada pela chamada geopolítica da vacina.
A mobilização foi desenhada em abril de 2020, quase dois meses depois de a pandemia ter sido decretada pela OMS (Organização Mundial da Saúde), com o estabelecimento do consórcio Covax Facility.
Um grupo de países mais ricos bancaria o grosso da compra e doação de vacinas para nações mais pobres.
Alguns, como o Brasil, se alistaram como compradores pagando do bolso —de forma polêmica, o governo federal optou por garantir só o mínimo possível de cobertura. Ao todo, o Covax previa distribuir 2 bilhões de doses em 2021.
Não deu exatamente certo, e até 2 de julho 95 milhões de inoculações haviam sido distribuídas. Dois motivos concorreram para isso.
O primeiro, a estratégia adotada pelo mundo rico. Em 2020, países com mais recursos buscaram entesourar imunizantes, levando a casos como o canadense, que comprou duas vezes o necessário.
Com efeito, o G7, clube dos ricos, reservou para si 1/3 das doses disponíveis, tendo apenas 10% da população mundial. A OMS chiou, chamando diplomaticamente a iniciativa de mesquinha e burra.
O primeiro epíteto é discutível, dado que para os governos a prioridade era a de imunizar suas populações primeiro, a todo custo. É difícil negar o cálculo político disso.
Mas quanto à sapiência da ideia, o ponto central foi visto na Índia e no Brasil: populações não vacinadas e com alta circulação do vírus viram o surgimento de mutações ainda mais infecciosas, levando inclusive ao pé no freio na abertura em diversos países.
O Sars-CoV2, afinal de contas, não respeita fronteiras.
Outra dificuldade ocorreu na mesma Índia. Assolada pela variante delta neste ano, em fevereiro ela suspendeu o fornecimento da vacina da AstraZeneca/Oxford que produziria sob licença no Serum Institute, um gigante mundial.
A prioridade seria o mercado interno. De lá para cá, a capacidade subiu de 60 milhões de doses mensais para 100 milhões, e poderá virar o ano em 250 milhões. Uma hora a cobertura chegará a 70% dos 1,4 bilhão de indianos e o fluxo poderá se restabelecido.
Isso tudo gerou uma janela de oportunidade geopolítica.
Rivais dos EUA e do Ocidente em geral, China e Rússia investiram fortemente numa diplomacia da vacina, ofertando seus imunizantes a preços competitivos e fazendo algumas doações no caminho.
Em mercados como a África e a América do Sul, vacinas chinesas foram dominantes durante boa parte do ano.
Empatia gera empatia e influência por meio do “soft power”, o poder que não se expressa por armas ou coerção econômica, ainda que bons negócios sempre estejam na mira com os contatos feitos.
Ainda assim, o escopo chinês parece algo limitado. São 17 milhões de doses doadas a 66 países, segundo contas da agência de notícias Reuters. Nada perto dos mais de 700 milhões de vacinas vendidas mundo afora, Brasil e sua Coronavac para começar.
No caso russo, ainda há um prêmio político maior, caso a Sputnik V venha a ser aprovada pela União Europeia.
Num ano em que o Kremlin está fustigado como inimigo número 1 do continente, com suas políticas repressivas e ações externas, virar fornecedor de vacina e de tecnologia seria um gol e tanto.
A chegada do americano Joe Biden ao poder, em 20 de janeiro, começou a mudar o jogo com a reversão de políticas do antecessor, Donald Trump.
Cabe lembrar o fato de que foi o republicano quem abriu o cofre para ver reais as vacinas americanas, ainda que parecesse o fazer a contragosto.
Biden virou maior doador do Covax, prometendo US$ 4 bilhões dos quase US$ 10 bilhões do programa.
Com o avanço na imunização americana, chegando apesar de problemas recentes a 67% de adultos com ao menos uma dose, Biden decidiu voltar ao jogo mundial.
Após dois anúncios titubeantes sobre distribuir doses ociosas, o americano foi para as cabeças e prometeu 500 milhões de vacinas da Pfizer para os mais pobres até 2022, 200 milhões neste ano.
O anúncio ocorreu no começo de junho, e logo na sequência Biden ouviu em reunião de cúpula do G7 a promessa de mais 500 milhões de doses. Isso mesmo com a letargia burocrática que marca a vacinação desigual na Europa.
Até trocos sobraram, como 3 milhões de vacinas enviadas para o Brasil pelos EUA.
O aumento do ritmo de vacinação em locais como a China, que ultrapassou 1 bilhão de doses, sugere mais vacinas para a disputa por influência.
Tomara: segundo entidades como a ONG britânica Oxfam, se o mundo quiser frear a Covid-19, precisaria de 11 bilhões de doses rapidamente.
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