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Alexandre Kalache

Então o atestado de óbito da rainha Elizabeth 2ª não é válido?

Apontar "velhice" como causa de morte é um grande retrocesso; ninguém morre de infância, adolescência ou idade adulta jovem

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Alexandre Kalache

Médico gerontólogo, é presidente do Centro Internacional da Longevidade e ex-diretor do Departamento de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS)

Quando o duque de Edimburgo faleceu, no início do ano passado, o médico da família real atestou "velhice" como causa da morte. A estranheza foi grande.

Morrer de velhice?

Mas ele não havia cometido um erro. Dois anos antes, na Assembleia Mundial da Saúde de 2019, o comitê de experts nomeado pela Organização Mundial da Saúde para propor a 11ª revisão do Código Internacional de Doenças (CID) havia recomendado que o muito criticado (por mal definido) código "senilidade" fosse substituído por "velhice". No entanto, o fato passou despercebido.

Rainha Elizabeth 2ª e o Príncipe Philip sentados, um ao lado do outro, em seus tronos.
A rainha Elizabeth 2ª, sentada ao lado do príncipe Philip, no Palácio de Westminster, em Londres, em 2014 - Carl Court - 4.jun.2014/Reuters

A nova versão do CID só viria a ser de uso obrigatório no início de 2022, mas desde 2019 já poderia ser utilizada. A emenda saiu pior que o soneto. Como definir velhice por um critério puramente cronológico? Quando ela começa?

Uma vez conhecida a suposta causa de morte do duque, a sociedade civil internacional, inclusive a acadêmica, protestou com crescente veemência. A adoção de velhice como uma causa de morte traria danos imensuráveis, não apenas pelo idadismo intrínseco. Ninguém morre de infância, adolescência ou idade adulta jovem.

O envelhecimento é uma etapa da vida que, sim, aumenta o risco de doenças crônicas, o que não significa morrer de "velhice". A longo prazo, suponha, daqui a dez anos, olharíamos retroativamente e estaríamos às escuras. Do que estaria morrendo o segmento da população que mais cresce no mundo: de velhice? Como assim? Como poderíamos prevenir doenças, diagnosticá-las e tratá-las adequadamente? Cairíamos em um fatalismo inconsequente. Se é por velhice que as pessoas idosas morrem, não há o que fazer, não há como parar o tempo.

Uma regra básica em saúde pública é que o que não se mede permanece invisível. E o que é invisível permanece ignorado. Pior neste caso. Mortes podem ser ignoradas, mas raramente são invisíveis: estariam sim sendo invisibilizadas.

Atestado de óbito da rainha Elizabeth 2ª, com a informação de que a causa da morte foi "old age" (velhice)
Atestado de óbito da rainha Elizabeth 2ª, com a informação de que a causa da morte foi 'old age' (velhice) - Divulgação Registro Nacional da Escócia

Foram sobretudo as entidades leigas da sociedade civil que levantaram suas vozes. E mais que em qualquer outro país, no nosso –talvez por estarmos tão traumatizados pela forma como fomos tratados durante a pandemia.

Representamos 3% da população mundial e, no entanto, tivemos 11% das mortes por Covid, a maioria delas entre pessoas com mais de 60 anos. Calcula-se que dois terços do total por negligência do governo, pela ausência ou morosidade na adoção de políticas públicas, pelos atrasos na compra de vacinas e pela corrupção. No Rio de Janeiro, por exemplo, foram construídos sete hospitais de campanha, apenas um deles funcionou, por dois meses, com milhões de reais gastos sem qualquer transparência, ninguém responsabilizado.

Tanto gritamos, tanto nos mobilizamos, tantas lives, artigos, entrevistas e, no final, conseguimos o que nos parecia impossível. No último minuto do segundo tempo, a duas semanas de 1º de janeiro, a OMS reverteu a decisão e retirou o código velhice do CID. Vitória muito celebrada.

E, de repente, parece que voltamos à estaca zero. Acaba de ser divulgado que o médico real deu, como causa de morte de sua alteza, velhice. Será que precisaremos nos mobilizar novamente, com a mesma intensidade? Afinal, se um médico supostamente competente o faz, que dirá seus colegas mundo afora não tão bem treinados, sobretudo no que toca a envelhecimento.

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