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PM que fuzilou dois colegas era conhecido pela gentileza e falou com a BBC um mês antes do crime

Sargento tinha dito à reportagem da BBC que apenas fazia o papel dele de seguir o manual da Polícia Militar

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Felipe Souza
São Paulo | BBC News Brasil

Um homem calmo, educado, respeitoso e, principalmente, gentil.

Sargento Gouveia disse à BBC que, em 32 anos na polícia, nunca tinha participado de uma ocorrência grave
Sargento Gouveia disse à BBC que, em 32 anos na polícia, nunca tinha participado de uma ocorrência grave - Reprodução/Youtube

Assim é descrito o sargento Claudio Henrique Frare Gouveia, de 53 anos, por conhecidos, colegas de farda, comerciantes próximos ao batalhão onde ele trabalhava, nas redes sociais e por alunos de uma associação onde ele ensinava patinação.

Mas, num dia de fúria, na segunda-feira (15), ele teria usado um fuzil para matar dois colegas de farda, o sargento Roberto da Silva e o capitão Josias Justi, comandante da PM na cidade de Salto, no interior de São Paulo. Em seguida, Gouveia se entregou a outro sargento.

A motivação do crime ainda não foi esclarecida oficialmente, mas a reportagem apurou que o duplo homicídio pode ter sido provocado por frequentes desentendimentos entre os policiais, principalmente por conta das escalas de trabalho.

Casado, o capitão Justi deixa dois filhos, de 3 e 5 anos. Já o sargento Silva, também casado, deixa três filhos, de 15, 18 e 29 anos. Ambos foram enterrados no cemitério Pax, em Sorocaba.

Procuradas, a Secretaria da Segurança Pública e a Polícia Militar não deram detalhes sobre o caso e se resumiram a dizer, por meio de uma nota, que "todas as providências de Polícia Judiciária Militar estão em andamento neste momento e a Corregedoria da Instituição acompanha as apurações".

Há um mês, a reportagem da BBC News Brasil entrevistou o sargento Claudio Gouveia.

Durante uma conversa de quase uma hora, a reportagem buscou entender por que ele era considerado nas redes sociais, especialmente no Youtube, um dos policiais "mais gentis do Brasil" e o que ele pensava disso.

Durante a entrevista, o sargento Gouveia agradeceu os elogios recebidos nas redes sociais e afirmou que apenas fazia o trabalho dele, seguindo o manual da Polícia Militar.

"A polícia foi aprendendo [ao longo dos anos] com as situações adversas que ela foi encontrando e foi melhorando. Não tive nenhuma ocorrência grave na minha vida, na minha carreira. Hoje, eu estou com 32 anos de polícia. Passei por diversos batalhões por consequência do meu trabalho", afirma.

Duplo homicídio

Na terça-feira (16), a BBC foi até Salto, onde conversou com dezenas de pessoas, entre testemunhas do crime, comerciantes da região e também com a mulher de Gouveia.

A intenção foi saber mais sobre o que motivou a atitude drástica do sargento contra seus colegas. A reportagem teve acesso ao boletim de ocorrência feito pela Polícia Militar, que contém o depoimento de 12 policiais militares que estavam no batalhão no momento do duplo homicídio.

De acordo com as testemunhas, por volta das 9h, Gouveia disse para os militares que haveria um treinamento, que seria feito com fuzis na parte externa do batalhão, e pediu para que todos saíssem do prédio e fossem até o local.

Quando todos saíram, dizem as testemunhas, ele trancou a porta e foi para a sala onde estavam as vítimas.

Um policial disse à reportagem que, no caminho, ele passou pelo setor administrativo e fez um alerta.

"Ele disse para as pessoas não se preocuparem porque não aconteceria nada com elas. Que poderiam ouvir barulhos, mas que ficaria tudo bem com as outras pessoas da equipe", afirmou à reportagem um policial que pediu para não ser identificado.

Armado de um fuzil, ele fez diversos disparos contra Roberto da Silva e Josias Justi, contam as testemunhas. As vítimas chegaram a ser socorridas pelo helicóptero Águia da PM, mas não resistiram aos ferimentos.

Logo após os tiros, Gouveia se entregou e foi preso. A previsão era de que ele passasse por uma audiência de custódia na terça-feira (16) para decidir se ele seria solto ou mantido preso no presídio Romão Gomes, dedicado a policiais militares, na zona norte da capital paulista.

No entanto, ele passou mal e a audiência foi remarcada para esta quarta (17).

Com bandeiras a meio mastro, o batalhão funcionou normalmente no dia seguinte, mas com um profundo clima de tristeza. Os policiais dizem que a tropa está psicologicamente abalada.

"Está todo mundo arrasado. Ninguém tem condições de trabalhar aqui hoje. O enterro estava lotado e a nossa equipe foi ao velório. Ninguém consegue acreditar no que aconteceu", relatou um dos PMs à reportagem.

Uma comerciante da região, que pediu para não ser identificada, disse que o sargento era visto frequentemente ajudando pessoas, como vizinhos e moradores de rua.

"Foi por causa dessa bondade dele que as pessoas ficaram chocadas quando descobriram que foi ele [o autor do crime]. É inacreditável", exclamou.

Outro, disse que faria um almoço para os soldados nesta semana e que já tinha inclusive comprado as carnes, a pedido do capitão Josias Justi.

"Eu não tenho do que reclamar de nenhum deles. Conheço os policiais desse batalhão e não tem como acreditar no que aconteceu, principalmente o Gouveia. Eu não julgo porque não sei o que passou na cabeça dele, mas foi algo completamente imprevisível", afirmou à reportagem.

Questionado sobre quais seriam as possíveis motivações, o policial se resumiu a dizer: "Muita pressão".

Na terça, a BBC também conversou por telefone com a mulher do sargento Gouveia. Ela disse que, ao menos por enquanto, não vai comentar o caso. Mas mandou algumas fotos do policial durante as aulas de patinação e afirmou que ela está extremamente abalada.

Procurada, a Polícia Militar não informou se Gouveia e a mulher dele, também PM, recebiam acompanhamento psicológico nem mesmo qual seria a motivação do crime.

A reportagem não conseguiu contato com as famílias das vítimas do crime.

Sargento Gouveia sorri com um bebê no colo
Pessoas ouvidas pela reportagem descrevem Gouveia como uma pessoa respeitosa não apenas como policial, mas também sem a farda - Arquivo pessoal

Nascido no Paraná e criado em Araçatuba, no interior de São Paulo, o sargento Gouveia já atuou também na capital paulista, em batalhões da zona sul e central.

Em Salto há dez anos, ele contou para a BBC que entrou na polícia por influência do pai.

"Ele foi agricultor por muito tempo, analfabeto. Era o sonho dele entrar no Exército ou virar policial. E parte dos brinquedos que ele dava para a gente eram viaturas e distintivos. Nisso, servi o Exército e surgiu a oportunidade de prestar concurso. Prestei, passei e estou até hoje, incentivado pelo meu pai", contou ele.

Ele disse ter iniciado a carreira na polícia em 1991 e que se orgulhava de não ter se envolvido até então em nenhuma ocorrência grave.

Durante toda a entrevista, ele manteve um tom elogioso à corporação e citou uma evolução na conduta da tropa como um todo.

'Enquadros gentis'

Em um vídeo de pouco mais de um minuto, registrado por uma câmera acoplada ao capacete de um motociclista abordado na região de Salto, o sargento Gouveia conversa com o homem de maneira cordial e respeitosa.

Com uma postura receptiva e sem armas em punho, ele pergunta o nome e o que o piloto está carregando no baú. "Marmita e bolo", responde o motociclista na sequência.

"Senhor [nome do motociclista], está sendo desencadeada a Operação Rodovia Mais Segura em todo o Estado de São Paulo, simultaneamente. Desce um pouquinho (da moto), põe no pezinho e apresente o documento do senhor", disse com calma o experiente sargento Gouveia.

O registro o incluiu no rol de uma série de vídeos publicados no Youtube que reúne os "Enquadros mais gentis do Brasil". O que o destaca em meio aos outros colegas de profissão incluídos na edição é a quantidade de comentários elogiosos.

"Esse policial tem meu completo e absoluto respeito. Policial digno e exemplar. Que pena que nem todos são assim tão simpáticos", diz o mais curtido deles.

Sargento Gouveia de uniforme da PM em um estacionamento
No YouTube, Gouveia está em uma coletânea que reúne as abordagens 'mais gentis do Brasil' - Reprodução/Youtube

Entre as dezenas de comentários que rasgam elogios ao sargento, um deles também destaca o comportamento do oficial sem a farda.

"Ele é meu treinador de hóquei. Ele é um dos melhores policiais que já conheci. Conheço ele de farda e na casa dele. Um exemplo de cidadão e de policial. Ele tem um projeto social onde ensina patinação aqui no meu bairro. Ele é muito respeitado na comunidade local", afirmou.

Visão da fachada do posto policial onde o sargento Gouveia matou dois colegas de farda
Com bandeiras a meio mastro, clima era de profunda tristeza onde sargento matou dois colegas de farda - Felipe Souza/BBC

Um PM que patina

Durante a entrevista à BBC News Brasil, os momentos que mais empolgaram o sargento Gouveia foram quando ele foi perguntado sobre as aulas de patinação que oferecia no bairro onde morava em Salto.

"A minha atuação na comunidade lá se destaca. A gente consegue atingir mais de 300 pessoas, entre os que já saíram, que se formaram, e os que ficaram e hoje são voluntários. Nós hoje temos psicólogos, professores de história, profissionais liberais. Todo tipo de pessoa. Alunos, adolescentes que se tornam instrutores, ficam lá dentro do Instituto e continuam dando aula de patinação. Tudo de graça", contou.

Sargento Gouveia (à esq.) ao lado de participantes de projeto social no qual ele ensina hóquei e patinação
Sargento Gouveia (à esq.) ao lado de participantes de projeto social no qual ele ensina hóquei e patinação - Arquivo pessoal

São 30 voluntários que participam das aulas gratuitas. Até mesmo o equipamento é oferecido pelo sargento. As pessoas que se destacam são chamadas para participar do time de hóquei da cidade, apelidado de Jump City, uma brincadeira com o nome da cidade em inglês.

"O nosso foco aqui é só cuidar da criançada, da população", afirmou.

Na entrevista, o sargento Gouveia criticou quem usa casos de violência policial para generalizar o comportamento da corporação.

"Ocorre uma ocorrência lá no Amazonas e a pessoa não diz que foi lá no Amazonas, que foi aquele policial. Uma ocorrência foi lá no Pará. Você teria que falar: 'Foi um policial militar lá do Pará que cometeu aquela ocorrência e está sendo submetido a todo tipo de situação administrativa, respondendo por um fato que se tornou crime'. [Mas] não, a pessoa fala 'a Polícia Militar'. Hoje, com a globalização e a disseminação da notícia, é muito fácil. As pessoas acabam colocando no mesmo tonel", afirmou.

Na ocasião, o sargento ressaltou as qualidades que um policial deve ter para lidar com o público e não se exaltar durante uma abordagem, por exemplo.

"Para lidar com ocorrência, com o público, o policial militar precisa estar preparado emocionalmente, estar preparado espiritualmente, sabendo que ele corre o risco de ser ofendido e não levar para o lado pessoal, apenas profissionalmente. Então, se houver necessidade do emprego da força, será feito um escalonamento conforme está no manual. Mas o que eu posso adiantar é que isso é difícil de acontecer, uma vez que, se você vai trabalhar, você já está no controle de desviar de toda aquela energia negativa", explicou.

No fim da conversa, a reportagem da BBC pediu que o sargento Garcia mandasse um recado para as pessoas que criticam e têm medo do trabalho da PM, e também aos policiais que agem de maneira truculenta.

"Eu posso dizer para tu, tanto para os policiais militares, quanto para a população amiga num contexto geral. A Polícia Militar está aqui para servir e proteger. E posso dizer que todos nós policiais militares estamos atuando sobre a proteção de Deus, que é o ser mais divino que tem. Sob a proteção dele, a gente atua na defesa da vida, da dignidade da pessoa humana, de todos os direitos, integridade física, de tudo o que tem que ser preservado. Essa é a atuação da Polícia Militar", afirmou.

E encerrou com um convite.

"Eu quero agradecer a oportunidade. Muito obrigado. Você é um excelente profissional. E fica aberto um convite para você tomar café conosco e conhecer o nosso coronel. Esse pensamento que eu tenho é o mesmo do nosso coronel, o [Emerson] Drague. Ele atua com o batalhão dessa forma. É assim que ele comanda os policiais, assim ele quer que os policiais trabalhem. Ele é um excelente comandante. Então, fica aberto o convite para o senhor vir para cá conhecer a turma, conhecer Itu, uma das cidades mais antigas do país. Eu espero que essa notícia brilhe a Polícia Militar".

Reportagem com a colaboração de Felipe Corazza

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