Folguedo de Moçambique resiste em comunidades afro-brasileiras e quilombolas

Em Monteiro Lobato, no interior de São Paulo, grupo mantém a tradição e pratica a dança nas festas religiosas

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Fernando Granato
Monteiro Lobato (SP)

Uma sangrenta rebelião de pessoas escravizadas a bordo de um navio negreiro que chegava a Salvador, há 200 anos, marcou o auge de um dos ciclos escravistas menos conhecidos e estudados até hoje: o de Moçambique.

Embora de menor duração e numericamente inferior aos demais, este ciclo deixou marcas genéticas e culturais no povo brasileiro. Até hoje se pratica em comunidades afro-brasileiras e quilombolas, por exemplo, o folguedo de Moçambique, uma dança de origem africana que acompanha festejos religiosos Brasil afora.

Depois da rebelião de 1823 —na qual os escravizados mataram os tripulantes do navio a golpes de lenha, porque temiam ser comidos pelos brancos em terra—, o governo empreendeu uma repressão ostensiva aos escravizados moçambicanos.

Homem negro com vestes brancas, azul e vermelhas mostra um bastão
Domingos Nunes, 83, com bastão de madeira e roupa do grupo Moçambique Esperança usada na apresentação da dança na zona rural de Monteiro Lobato, interior de SP - Eduardo Knapp/Folhapress

Um famoso quilombo que havia se instalado no interior da capitania do Rio de Janeiro, na cidade de Macaé, foi implacavelmente destruído, sendo seu líder, um moçambicano conhecido como Curukango, enforcado em cerimônia pública.

Nem mesmo a repressão implacável conseguiu inibir a perpetuação da cultura trazida por esses cativos. Para driblar o processo de aculturação imposto, eles se organizaram em irmandades religiosas e, por meio delas, conseguiram manter tradições ancestrais como por exemplo o folguedo.

No Vale do Paraíba, região que recebeu grande contingente de escravizados para as lavouras de café, as irmandades de devoção a São Bendito e Nossa Senhora do Rosário foram as responsáveis pela resistência cultural negra por meio de folguedos como o Moçambique, o Jongo e a Congada.

Em Monteiro Lobato, pequeno município de 4.000 habitantes no sopé da Serra da Mantiqueira, antes chamado de Buquira, existe até hoje um grupo que pratica a dança de Moçambique nas festas religiosas, denominado Esperança.

Logo depois da abolição da escravatura, em 1888, um grupo de recém-libertos se fixou numa área rural da antiga Vila de Buquira, onde havia existido um quilombo. A partir desse lugar, depois batizado como Bairro dos Forros, a cultura afro-brasileira se disseminou.

Nem todos os integrantes do grupo de Moçambique Esperança vieram desse bairro. Domingos Nunes, 83, é bisneto de uma mulher escravizada e nasceu e trabalhou até os 18 anos na fazenda Buquira, que foi do escritor Monteiro Lobato (1882-1948).

Foram quatro gerações da mesma família trabalhando na mesma propriedade, os primeiros como escravizados e os demais como funcionários, sem que nenhum deles tenha jamais conseguido um alqueire de terra própria para plantar.

"A dança do Moçambique é um direito que a gente tem de levar nossa cultura pra frente", diz Domingos, que no passado ia montado num cavalo para os ensaios, a oito quilômetros da fazenda.

Manoel Santos Almeida, 71, é o atual mestre do grupo Esperança, por ter herdado do pai a maneira de dançar e vestir que o Moçambique utiliza nos dias de hoje. "Cada grupo de Moçambique tem uma característica própria", afirma. "A nossa vem igual desde 1940, quando meu pai formou o grupo a partir do que viu em outros que existiam na região."

O que é a dança de Moçambique

Segundo o folclorista Luís da Câmara Cascudo, autor do clássico "Dicionário do Folclore Brasileiro", a dança de Moçambique teve origem com os primeiros escravizados trazidos para a extração de ouro em Minas Gerais, no século 18. Depois foi sofrendo transformações ao longo do tempo e ganhando elementos da cultura europeia católica, como forma de sobreviver sem ser reprimida.

O Moçambique Esperança utiliza roupas brancas, quepe branco, manto vermelho nos ombros e faixas vermelhas e azuis. Manoel explica que as vermelhas representam são Benedito e as azuis Nossa Senhora Aparecida. Os instrumentos musicais utilizados são o pandeiro, a caixa de repique e guizos fixados nos calcanhares.

Na dança eles batem bastões simulando embates entre os dançarinos. O grupo, com 18 integrantes, ensaia atualmente numa propriedade rural emprestada por um morador da cidade e se apresenta nas festas religiosas e em eventos como Revelando São Paulo, festival de cultura popular que acontece uma vez por ano no parque da Água Branca, na capital paulista.

Fluxo forçado de escravizados da região cresceu no século 19

A vinda de escravizados oriundos do sudeste da África, região onde está Moçambique, intensificou-se a partir de 1815, depois da assinatura de um acordo entre Inglaterra e Portugal, abolindo o tráfico negreiro ao norte da linha do Equador. Com isso, deixaram de vir africanos da chamada Costa Mina, região que abrange Nigéria e Benin.

De acordo com os pesquisadores Renato Leite Marcondes e José Flávio Motta, da USP (Universidade de São Paulo), estima-se que 358 mil cativos oriundos da costa sudeste da África ingressaram na América do Sul, especialmente no Brasil. Isso representa apenas 6,5% do total de africanos que ingressaram no Brasil, estimado em 5,5 milhões.

Mesmo assim, no campo da genética, a presença também foi marcante. Segundo pesquisa feita pelo geneticista Sérgio Pena, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 12,3% de um grupo de afrodescendentes estudados por ele, em São Paulo, tinham ancestralidade materna na região onde fica hoje Moçambique.

Domingos e Manoel, do Grupo de Moçambique Esperança, não sabem de onde vieram seus antepassados. "O que a gente sabe é que essa é uma dança que começou na África e é para reverenciar nossos antepassados que a gente dança", afirma Domingos.

O projeto Quilombos do Brasil é uma parceria com a Fundação Ford

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