Descrição de chapéu DeltaFolha violência

Em 11 anos, letalidade policial cresce no centro e zona oeste e cai na zona leste de São Paulo

OUTRO LADO: governo Tarcísio diz que ocorrências de mortes decorrentes de intervenção de PMs 'são consequência da reação violenta de criminosos' e que casos são investigados

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São Paulo

Todo dia 7, a enfermeira Deuza Cordeiro de Lima, 58, senta em um canteiro no cruzamento das ruas do Glicério e Lavapés, no centro de São Paulo, para orar em homenagem a seu sobrinho, Thiago Gomes da Silva Cordeiro Lima.

Ele é uma das 3.190 pessoas mortas por policiais militares na capital paulista nos últimos 11 anos, segundo dados analisados pela Folha.

Deuza Cordeiro de Lima é uma mulher branca de olhos verdes. Ela usa uma camiseta com a foto do sobrinho Thiago Lima
Deuza Cordeiro de Lima no local onde seu sobrinho foi morto por um policial militar de folga em janeiro de 2023 - Danilo Verpa/Folhapress

No período —que vai de 2013 a 2023—, a dinâmica desses casos mudou na cidade: a zona leste, que detinha quase 40% das mortes, passou a responder por 18,5% das ocorrências, enquanto o centro e a zona oeste registraram altas significativas na proporção de mortes.

A reportagem analisou os dados da SSP (Secretaria de Segurança Pública) da última década e os separou por circunscrição, ou seja, o local onde aconteceu o crime.

Em nota, a pasta afirma que as mortes decorrentes de intervenção policial "são consequência da reação violenta de criminosos contra a ação policial" e que todas as ocorrências são rigorosamente investigadas pelas polícias Civil e Militar, com o acompanhamento do Ministério Público e do Judiciário.

As investigações de mortes por intervenções policiais são remetidas para a unidade especializada em homicídios, teoricamente com mais estrutura para investigação. Grande parte dos casos, porém, fica sem solução na Justiça.

Foi isso que aconteceu com Thiago, morto aos 19 anos por um PM de folga no dia 7 de janeiro do ano passado. Segundo o boletim de ocorrência do caso, ele teria tentado roubar o agente, que então disparou quatro vezes contra o jovem.

Deuza diz não acreditar nessa versão e afirma que o sobrinho tinha se matriculado no dia anterior em uma faculdade para cursar análise de desenvolvimento.

"Preciso acabar com essa dor, essa agonia. Preciso que o fato seja esclarecido, eu quero saber a verdade", afirma ela, que cuidava de Thiago desde que ele tinha 3 anos. "A polícia tem autonomia para prender. Se ele estivesse armado, eles tinham que se defender, mas meu menino não estava armado."

Procurada, a SSP diz que "o inquérito policial segue em andamento pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa dentro do prazo adequado" e que a polícia realiza diligências para esclarecer o que aconteceu.

Para a diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, o aumento de mortes causadas por policiais militares no centro pode ser uma consequência do crescimento dos roubos de celulares na região.

"Considerando o perfil do centro, é muito plausível que num lugar onde o crime patrimonial aumenta, e exista uma maior sensação de insegurança, aumente também letalidade policial", afirma.

Mudança regional nas mortes

Ao todo, o número de mortes causadas por PMs na cidade diminuiu nos últimos três anos. Em 2013, início da série histórica analisada pela reportagem, foram 245 casos no município. No ano seguinte, esse número subiu para 375, o mais alto do período. O patamar continuou acima de 300 mortes por ano até 2021, quando foi de 200. Em 2023, foram 146 mortes.

A diminuição em todo o município coincide com a ampliação do uso de câmeras corporais pelos agentes —o projeto para o uso do equipamento começou em 2014, mas ganhou mais força a partir de 2020.

Segundo a SSP, atualmente, todos os batalhões da capital e da Grande São Paulo estão equipados com câmeras operacionais portáteis, sendo 10.125 em funcionamento.

Para o coronel reformado da PM José Vicente da Silva Filho, o uso das câmeras ajuda a explicar a diminuição dos casos na cidade. Ele afirma, porém, que a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) tem adotado uma nova estratégia de confronto, o que pode fazer com que os números voltem a subir em breve.

"O que se percebe é tendência de queda em geral, principalmente nas zonas mais populosas", diz ele. "Mas isso era o efeito da gestão da redução da letalidade do comando anterior com câmeras, comissão de mitigação etc. Com a mudança de chave de prevenção para repressão, pode se esperar incremento da letalidade como se percebe historicamente."

O atual governador já questionou publicamente a eficácia das câmeras na segurança pública e afirmou que não pretende investir mais verbas na compra ou implementação do equipamento.

Para Bruno Langeani, gerente de projetos Sou da Paz, a direção da PM em cada região também pode tomar atitudes para diminuir a letalidade. "Visitei comandantes que tinham pessoalmente este princípio [de diminuir confrontos]. Implementaram medidas, aumentavam supervisão e punição. E derrubavam mortes. Óbvio que tem algumas inevitáveis", diz ele.

A SSP afirma que faz um "investimento contínuo na capacitação dos policiais, na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo e na implementação de políticas públicas visando à redução da letalidade policial. Os programas de formação para o efetivo são constantemente atualizados, e comissões especializadas são designadas para analisar e aprimorar os procedimentos, bem como revisar os treinamentos e a estrutura das investigações."

Quem puxou a queda em toda a cidade foi a zona leste, exatamente onde a letalidade policial era a mais alta. No total, foram 1.219 mortes, o equivalente a 38,2% do total de casos no município. O 49° DP (São Mateus), que fica na região, registrou sozinho 97 mortes no período, o maior número.

O pico da zona leste foi em 2014, com 175 mortes. O número caiu nos anos seguintes, mas permaneceu acima de cem até 2021. Nos últimos dois anos, porém, passou a reduzir em ritmo acelerado. No ano passado, foram 27 casos, o menor da série.

Com isso, as zonas oeste e sul passaram a ter a maior letalidade policial da cidade, com 44 e 43 mortes em 2023. Isso apesar de ambas terem diminuído o número de casos em relação a 2013, quando tiveram respectivamente 52 e 66 mortes.

Enquanto a região onde acontecem os casos mudou ao longo do tempo, o perfil das vítimas seguiu basicamente inalterado. A análise dos boletins de ocorrência aponta que 99% dos mortos são do sexo masculino e que 57% têm de 15 a 29 anos.

Além disso, 59% dos mortos foram identificados como pardos, enquanto brancos e pretos correspondem a 28,8% e 10,8%, respectivamente. Amarelos e cores ignoradas não chegam a 1% cada uma. Segundo o Censo, 54,3% da população paulistana se considera branca, 33,4% se declara parda, 10,1%, preta e 2,1%, amarela.

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