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Daniela Machado

A foto e as lições de Kate Middleton

Manipulação agita debate sobre confiabilidade das informações, transparência e jornalismo

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Daniela Machado

Coordenadora do EducaMídia, programa de educação midiática do Instituto Palavra Aberta

Atire a primeira pedra quem nunca retocou uma foto antes de publicá-la. Na era das redes sociais, alguns ajustes na luz, um filtro para destacar a cor do mar ou truque para desenrugar a pele já não escandalizam ninguém, mas a realeza britânica parece ter ido longe demais.

Esta semana, uma fotografia da princesa de Gales, Kate Middleton, ao lado dos três filhos, desencadeou intenso debate sobre confiabilidade das informações, transparência e jornalismo, num contexto em que ferramentas de edição ou fabricação de imagens tornam-se cada vez mais acessíveis e populares.

A foto em questão, divulgada por canais oficiais da monarquia, era a primeira "aparição" de Kate desde meados de janeiro, quando foi submetida a uma cirurgia sobre a qual pouco se sabe, e serviu para alimentar boatos e teorias da conspiração ao invés de acalmá-los. Indícios de manipulação não demoraram a aparecer, incluindo falhas no desenho do piso, no acabamento das roupas, no contorno dos cabelos e até na vegetação (não condizente com a estação do ano).

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A foto suspeita de ter sido manipulada - KensingtonRoyal

O assunto ganhou proporções gigantescas porque a foto, em si, já seria uma notícia. Na ausência de informações por tantas semanas, uma imagem supostamente recente e íntegra daria ao público pistas sobre o estado de saúde da futura rainha da Inglaterra.

Conceituadas agências de notícias anunciaram a decisão de excluir o material de seus bancos de imagem. Associated Press (AP), Reuters e Agence France Presse (AFP) estiveram entre os primeiros veículos a sinalizar para seus clientes (geralmente outras empresas de mídia, que compram fotos produzidas em diversas partes do mundo) que a fotografia da princesa e seus filhos não estava alinhada aos padrões jornalísticos, que, em geral, permitem apenas leves retoques.

Ainda que outras pessoas também tenham apontado os problemas em redes sociais, o posicionamento das agências de notícias foi essencial por não chancelar as informações apresentadas como retrato fidedigno de uma situação atual. A ação foi um lembrete de que o jornalismo profissional pode —e deve— exercer o papel de "guardião" das informações, seguindo protocolos para averiguar a confiabilidade do que é publicado e assumindo responsabilidades.

Em tempos de pós-verdade, em que praticamente perdemos o terreno comum delineado pelos fatos, isso não é pouca coisa. Vimos emergir, nos últimos anos, discursos assustadores em que pontos de vista se sobrepõem à realidade, opiniões são vendidas como verdade irrefutável e grupos que desafiam a ciência e as evidências em nome de crenças pessoais operam à luz do dia (que o digam os terraplanistas).

Os desafios tendem a se avolumar e, também por isso, o caso Kate Middleton merece ser debatido. Aplicações de inteligência artificial —embora, aparentemente, não tenham sido empregadas na fotografia da princesa— devem ser cada vez mais usadas, ampliando as nuances da desinformação.

Edição de imagens não é algo novo (há casos emblemáticos na história muito antes das câmeras digitais, como a supressão de personagens em fotos de Josef Stálin ou de Adolf Hitler). O que temos de novidade é o acesso a ferramentas mais sofisticadas e por um número muito maior de pessoas, além de canais superpoderosos de disseminação na internet.

Governos têm discutido formas de regulamentar o uso de tais tecnologias. No Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) inaugurou nesta semana o Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia que, entre outras funções, vai auxiliar os tribunais regionais no monitoramento de deep fakes. Pouco tempo antes, um conjunto de regras sobre o uso de IA na eleição foi aprovado pela Corte.

Veículos de comunicação também têm elaborado manuais de como a IA pode ser utilizada no trabalho jornalístico. Alguns estabeleceram, por exemplo, que conteúdos sintéticos precisam conter um aviso ou etiqueta, garantindo a transparência na comunicação com o público.

Para nós, essas notícias e o exemplo da realeza britânica são um alerta de que não há espaço para o consumo passivo de informações. Nunca foi tão importante exercitar o senso crítico, mesmo que para assuntos mais distantes da nossa realidade, como a conduta de uma monarquia que nem é nossa.

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