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Dinamarca domina doações de esperma na Europa ao permitir pagamento e normalizar tabus

Interessados recebem até R$ 370 por doação; brasileiros preferem perfil escandinavo, segundo especialista

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Patrícia Figueiredo
Aarhus (Dinamarca)

O estudante Lasse Haldrup, 23, vive em Aarhus, uma cidade de pouco mais de 300 mil habitantes na região central da Dinamarca. Em vez de trabalhar meio período em um restaurante, como fazem vários de seus amigos, Lasse tem outra ocupação: é doador de esperma em um banco de sêmen, onde fatura pelo menos € 450 por mês (cerca de R$ 2.500) graças a uma frequência média de três doações por semana.

"Para mim, é uma oportunidade de ajudar as pessoas que querem ter filhos e ao mesmo tempo ganhar algum dinheiro, e assim eu não preciso procurar um emprego de meio período. Eu sinto que é uma situação em que todos saem ganhando: você ajuda as pessoas, e é pago por isso", diz Haldrup.

Homem branco com cabelos loiros sentado
Lasse Haldrup, 23, doador de esperma em Aarhus, na Dinamarca - Patrícia Figueiredo

A Dinamarca é o principal exportador de amostras de esperma na Europa, um comércio aquecido graças à popularidade dos procedimentos de inseminação artificial ou fertilização in vitro no continente. Agora, empresas da área estão de olho em novos compradores – inclusive brasileiros.

O Cryos International, que se intitula o maior banco de esperma do mundo, lançou recentemente uma versão em português do seu site e contratou funcionários especializados na América Latina.

Atualmente avaliado em US$ 4,6 bilhões, o mercado global de bancos de esperma deve crescer cerca de 4% a partir de 2023 e chegar a US$ 5,6 bilhões até 2027, segundo a consultoria Expert Market Research.

As amostras de homens dinamarqueses dominam a Europa, com dois dos maiores bancos de sêmen do continente. Além do Cryos, que tem cerca de 1.000 doadores, há ainda o European Sperm Bank, com sede em Copenhague, e mais de 500 contribuintes regulares.

Na Bélgica, por exemplo, 6 em cada 10 bebês concebidos por meio de doações de esperma são gerados a partir de esperma de dinamarqueses, de acordo com um levantamento obtido pelo jornal local Het Laatste Nieuws. No Reino Unido, mais da metade dos doadores são estrangeiros, sendo 21% da Dinamarca, segundo dados da agência britânica de fertilidade e embriologia (HFEA, na sigla em inglês).

Países da Europa costumam permitir que as doações de esperma sejam remuneradas e que as famílias escolham o doador, inclusive entre estrangeiros. O país também permite que os doadores escolham se querem ser anônimos ou se autorizam que os filhos biológicos os procurem ao completarem 18 anos. Na Dinamarca, os clientes podem navegar por catálogos digitais com fotos e filtrar os perfis por atributos físicos ou profissão em um esquema parecido com o de sites de namoro.

A possibilidade de conhecer os doadores é objeto de debate. Críticos afirmam que a prática poderia favorecer os dinamarqueses, geralmente loiros, altos e de olhos claros – características desejadas por muitos clientes de bancos de esperma.

Katty Tataje, gerente de marketing para América Latina no banco Cryos International, confirma que mesmo o público latino, que muitas vezes tem características físicas diferentes dos europeus, costuma optar pelo perfil escandinavo.

"Eu diria que provavelmente apenas um dos pedidos que eu recebi do Brasil parecia estar interessado em um perfil que pode ser mais local, com pele morena e olhos escuros. Todos os outros indicam perfis mais escandinavos", diz.

No Brasil, a legislação determina que a doação de esperma é um ato voluntário, ou seja, o doador não pode ser pago. Além disso, apenas algumas características físicas podem ser divulgadas para as famílias, além da doação via empresas especializadas ser sempre anônima.

Para conceber uma criança com esperma importado no Brasil, um banco de sêmen sediado no país deve solicitar uma autorização especial da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). De 2014 a 2016, foram emitidas anuências para a importação de 1.011 amostras, segundo os últimos dados divulgados pela agência. O órgão não informa quais são os países de origem.

Doação não é tabu

O processo para se tornar um doador de esperma nos principais bancos da Dinamarca é longo: os candidatos são submetidos a vários exames médicos, testes que detectam até 300 doenças genéticas, além de questionários psicológicos. De 4% a 5% são aprovados ao final da seleção. Os escolhidos recebem de € 40 (R$ 220) a € 67 (R$ 370) por doação, e podem ceder as amostras até quatro vezes por semana.

Nos centros de doação há salas privativas para os doadores. Elas são equipadas com banheiro, cama e uma televisão touch screen conectada a um site pornô. Algumas empresas disponibilizam até óculos de realidade virtual que exibem conteúdos pornográficos de forma imersiva. Segundo o executivo Martin Lassen, do Cryos International, o dispositivo pode tornar a experiência de masturbação mais realista e resultar em amostras de esperma de melhor qualidade.

Na fachada, nos corredores e na recepção do escritório da empresa em Aarhus, quase nada denuncia que ali funciona um banco de sêmen, mas o negócio tampouco é escondido ou tratado como tabu. Propaganda desta ou outras empresas são espalhadas pela cidade, convidando homens a se tornarem doadores em anúncios que os comparam a bombeiros. "Alguns salvam vidas, outros dão vida", diz um dos cartazes.

"Se você perguntar a qualquer jovem dinamarquês, ele com certeza já viu um anúncio de um banco de esperma no ponto de ônibus ou recebeu um folheto na sua caixa de correio. Eles se acostumaram tanto com isso que, hoje em dia, é uma coisa natural, faz parte da nossa cultura", diz Annemette Arndal-Lauritzen, CEO of European Sperm Bank.

Segundo Sebastian Mohr, autor do livro "Being a Sperm Donor - Masculinity, Sexuality, and Biosociality in Denmark" (Ser um doador de esperma - masculinidade, sexualidade e biossocialidade na Dinamarca, em português), a cultura local favorece as doações. A liberdade sexual e o altruísmo que são atribuídos ao país podem explicar a maior propensão para contribuir. De acordo com o autor, para muitos dinamarqueses, doar esperma não é um tabu, mas uma boa ação.

Dilemas éticos

Apesar das propagandas que relacionam doações e solidariedade, o comércio de esperma ainda é território de discussões éticas. Uma das principais questões é quantas vezes o sêmen de um mesmo doador pode ser comercializado. Um grande número de doações pelo menos homem aumenta o risco de filhos consanguíneos.

Embora não exista um limite mundial, vários países estabelecem regras próprias para mitigar as chances: na Holanda, um mesmo doador pode fornecer esperma para até 25 famílias.

Já na Dinamarca, o limite é de 12 famílias, enquanto a Espanha autoriza apenas seis. No Brasil, não existe determinação legal, mas uma resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) orienta que médicos evitem "que um doador venha a produzir mais do que uma gestação de criança de sexo diferente numa área de um milhão de habitantes".

Os bancos de sêmen também criam limites próprios para cada doador: as amostras de esperma de Lasse Haldrup, por exemplo, podem ser usadas por até 75 famílias, espalhadas pelo mundo. Outros homens, porém, têm limites que chegam a 200.

A identidade dos doadores também é alvo de dilemas éticos: enquanto alguns países permitem a procura do pai biológico no futuro, como é o caso da Alemanha, da Holanda e do Reino Unido, outros só autorizam a doação anônima, como na Espanha, Hungria e Polônia.

A Dinamarca autoriza os dois tipos de doação. Lasse Haldrup escolheu ser um doador aberto, e diz não se preocupar com o risco de ser contatado por muitos ao mesmo tempo.

"Não me importo de dizer às pessoas que sou doador de esperma, e também não me preocupa que eles me procurem quando completarem 18 anos. É o que eu provavelmente gostaria de fazer, se fosse comigo", diz Haldrup.

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