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The New York Times

Ozempic me ensinou que pensamos a obesidade da forma errada

Usuários do medicamento ficam constrangidos porque estamos presos em velhas narrativas sobre o que é a obesidade

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Johann Hari
The New York Times

Desde a adolescência, sempre sonhei em perder muito peso. Por isso, quando passei de 92 kg para 73 kg em um ano, fiquei perplexo com meus sentimentos. Eu estava tomando Ozempic, e fui tomado pela sensação de estar trapaceando e fazendo algo imoral.

Não sou o único. Nos Estados Unidos (onde agora passo parte do meu tempo), mais de 70% das pessoas são obesas ou estão acima do peso e, de acordo com uma pesquisa, 47% dos entrevistados disseram estar dispostos a pagar para tomar os novos medicamentos para perda de peso. Não é difícil entender as razões.

Esses remédios fazem com que seus usuários percam uma média de 10% a 20% do peso corporal, e os testes clínicos sugerem que a próxima geração de medicamentos (provavelmente disponível em breve) levará a uma perda de 24%, em média. No entanto, à medida que um número crescente de pessoas usa drogas como Ozempic, Wegovy e Mounjaro, ficamos mais confusos como cultura, bombardeando qualquer pessoa que as adote com uma vergonha brutal.

Isso está acontecendo porque estamos presos em um conjunto de velhas narrativas sobre o que é a obesidade, e sobre as formas moralmente aceitáveis de superá-la. Mas o fato de muitos de nós estarmos recorrendo aos novos medicamentos para perda de peso pode ser uma oportunidade de sair dessa armadilha de vergonha e estigma, e o caminho para uma narrativa mais verdadeira.

Caixas dos medicamentos Ozempic e Wegovy - Hollie Adams/Reuters

Na minha geração, a obesidade se tornou generalizada, deixando de ser rara para se tornar quase a norma. Nasci em 1979 e, quando tinha 21 anos, as taxas de obesidade nos EUA já tinham mais que dobrado. Desde então, elas dispararam. A pergunta óbvia é: por quê? E como esses novos medicamentos para perda de peso funcionam? A resposta para ambas as perguntas está em uma palavra: saciedade. É um conceito que não usamos muito no dia a dia, mas que todos já experimentamos em algum momento. Descreve a sensação de ter comido o suficiente e não querer mais.

A principal razão pela qual ganhamos peso em um ritmo sem precedentes na história da humanidade é que nossa dieta mudou radicalmente, de maneiras que prejudicaram profundamente nossa capacidade de sentir saciedade. Meu pai cresceu em um vilarejo nas montanhas suíças, onde comia alimentos frescos e integrais, preparados do zero e consumidos no mesmo dia. Mas nos 30 anos entre a infância dele e a minha, nos subúrbios de Londres, a natureza dos alimentos sofreu uma transformação em todo o mundo ocidental. Meu pai ficou horrorizado ao ver que quase tudo que eu comia era reaquecido e altamente processado.

As provas são claras de que o tipo de comida que meu pai consumia na infância traz rapidamente uma sensação de saciedade. Mas o tipo de comida que consumi na infância, grande parte produzida em fábricas, muitas vezes com produtos químicos artificiais, me deixava com a sensação de vazio e como se tivesse um buraco no estômago. Um estudo recente sobre o que as crianças americanas comem descobriu que os alimentos ultraprocessados representam 67% de sua alimentação diária. Esse tipo de alimento faz com que você queira comer cada vez mais. A saciedade chega tarde, se é que chega.

Um experimento científico, que apelidei de Parque do Cheesecake, me pareceu cristalizar esse efeito. Paul Kenny, neurocientista do Hospital Monte Sinai, em Nova York, cresceu na Irlanda. Depois de se mudar para os EUA no ano 2000, aos 20 anos, engordou 30 kg em dois anos. Ele começou a questionar se a dieta americana teria algum tipo de efeito estranho no cérebro e nos desejos, então elaborou um experimento para testar essa hipótese. Ele e seu colega Paul Johnson criaram um grupo de ratos em uma gaiola, aos quais deram um suprimento abundante de ração saudável e balanceada, feita com o tipo de alimento que os ratos vinham comendo fazia muito tempo. Os ratos comiam quando estavam com fome e, em seguida, pareciam se sentir saciados e paravam. Não ficavam gordos.

Mas, em seguida, Kenny e seu colega expuseram os ratos a uma dieta americana: bacon frito, barras de chocolate recheadas, cheesecake e outras guloseimas, e os ratos simplesmente amaram. Lançavam-se sobre o cheesecake, empanturravam-se e saíam com o rosto e os bigodes totalmente lambuzados. Rapidamente, perderam quase todo o interesse pelo alimento saudável, e o comedimento que costumavam demonstrar desapareceu. Em seis semanas, as taxas de obesidade dispararam.

Depois dessa mudança, os dois pesquisadores ajustaram o experimento novamente (de uma forma que parece cruel para mim, que fui viciado em KFC). Retiraram todos os alimentos processados e deram aos ratos sua antiga dieta saudável. Kenny estava confiante em que eles comeriam mais, provando que os alimentos processados haviam aumentado seu apetite. Mas aconteceu algo ainda mais estranho. Era como se os ratos não reconhecessem mais o alimento saudável como comida, e quase não o consumiam. Só voltaram a comê-lo, com relutância, quando estavam a ponto de morrer de fome.

Embora o estudo de Kenny tenha envolvido ratos, podemos ver manifestações desse comportamento em todos os lugares. Estamos todos vivendo no Parque do Cheesecake –e o efeito que os alimentos industrializados tem, de roubar a saciedade, é evidentemente o que criou a necessidade desses medicamentos como o Ozempic, que funcionam exatamente fazendo com que nos sintamos saciados. Carel le Roux, cientista cuja pesquisa foi importante para o desenvolvimento desses remédios, diz que eles aumentam o que ele e outros chamaram de "hormônios da saciedade".

Quando se entende esse contexto, fica claro que os alimentos processados e ultraprocessados criam um verdadeiro vórtice de fome, que esses tratamentos podem corrigir. Michael Lowe, professor de psicologia da Universidade Drexel que estuda a fome há 40 anos, me disse que os medicamentos são "uma solução artificial para um problema artificial".

No entanto, reagimos a essa crise causada em grande parte pelo setor de alimentos como se ela fosse resultado apenas da negligência moral individual. Eu me sentia um fracasso por ser gordo e ficava furioso comigo mesmo por conta disso. Por que direcionamos nossa raiva para dentro e não para fora, para a principal causa da crise? E, por extensão, por que queremos envergonhar as pessoas que tomam Ozempic, mas não aquelas que, por exemplo, tomam um medicamento para baixar a pressão arterial?

Acredito que a resposta esteja em duas concepções muito antigas. A primeira é a crença de que a obesidade é um pecado. Quando o papa Gregório I estabeleceu os sete pecados capitais, no século VI, um deles era a gula, geralmente ilustrada com imagens grotescas de pessoas acima do peso. O pecado exige punição antes que se possa chegar à redenção. Um exemplo disso é o reality show "The Biggest Loser" (O maior perdedor, em português), no qual pessoas obesas passam fome e se exercitam de forma extrema, em visível agonia, para demonstrar seu arrependimento.

A segunda concepção antiga é de que, quando se trata de peso, estamos todos em uma grande gincana. Nossa sociedade está repleta de pessoas que lutam contra as forças da nossa alimentação que nos fazem engordar, muitas vezes de forma dolorosa, tolerando a fome ou praticando muita atividade física. É como se fosse uma competição, em que as pessoas que conseguem emagrecer representam uma pressão adicional para que as outras sigam seu exemplo. Dessa perspectiva, pode parecer que as pessoas que tomam Ozempic estão agindo como Lance Armstrong, que usou drogas para melhorar seu desempenho. As pessoas que controlam o peso sem drogas podem pensar: "Eu me esforcei tanto para chegar aqui, e você consegue a mesma coisa com uma injeção semanal?"

Não vamos encontrar o caminho para uma conversa saudável e não tóxica sobre obesidade nem Ozempic até expormos e acolhermos esses pensamentos raramente compartilhados. Você não cometeu nenhum pecado porque ganhou peso. Você é o resultado de um ambiente disfuncional que dificulta muito a sensação de saciedade. Caso se irrite com quem usa esses medicamentos, lembre-se de que a competição não é entre você e a pessoa que está tomando medicamentos para emagrecer; é entre você e a indústria de alimentos, que está constantemente criando maneiras de minar sua saciedade. Se alguém está trapaceando, é esse setor. Deveríamos lutar juntos contra ele e seus produtos, e não contra pessoas desesperadas que buscam uma maneira de sair dessa armadilha.

Há benefícios extraordinários, bem como riscos preocupantes associados aos medicamentos para perda de peso. Reduzir ou reverter a obesidade aumenta consideravelmente a saúde, em média: sabemos, com base em anos de estudo da cirurgia bariátrica, que ela reduz os riscos de câncer, doenças cardíacas e morte relacionada ao diabetes.

As primeiras indicações são de que os novos medicamentos contra a obesidade estejam levando as pessoas a uma direção similar, radicalmente mais saudável, reduzindo significativamente o risco de ataque cardíaco ou derrame. Mas esses medicamentos podem aumentar o risco de câncer de tireoide. Para mim, é preocupante o fato de eles diminuírem a massa muscular, e temo que possam aumentar os distúrbios alimentares. É um quadro complexo, em que as provas devem ser avaliadas com muito cuidado.

Mas não podemos fazer isso se continuarmos perdidos em narrativas herdadas de papas pré-modernos, ou em uma competição sem sentido que só produz perdedores. Queremos que esses remédios para emagrecer sejam mais uma oportunidade para destruirmos uns aos outros? Ou queremos perceber que a indústria alimentícia alterou profundamente o apetite de todos nós, deixando-nos presos na mesma jaula, lutando para encontrar uma saída?

Johann Hari, jornalista britânico, é autor de "Magic Pill: The Extraordinary Benefits –and Disturbing Risks– of the New Weight Loss Drugs" (A pílula mágica: os extraordinários benefícios –e os perturbadores riscos– das novas drogas para perder peso, em português), entre outros livros.

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