Descrição de chapéu The New York Times

Francês é primeiro no mundo a receber dois transplantes faciais completos

Um resfriado, tratado com antibióticos, levou à perda do primeiro rosto transplantado

Tanguy Garrel-Jaffrelot
Paris | The New York Times

Ele já foi chamado de o homem de três caras.

Jérôme Hamon, da França, foi definido assim por conta de cirurgias pioneiras que fizeram dele a primeira pessoa a receber não só um mas dois transplantes faciais completos.

Jérôme Hamon, à esquerda, a primeira pessoa a receber dois transplantes totais de face com o médico Laurent Lantieri, no Hospital Europeu Georges-Pompidou, em Paris.
Jérôme Hamon, à esquerda, a primeira pessoa a receber dois transplantes totais de face com o médico Laurent Lantieri, no Hospital Europeu Georges-Pompidou, em Paris. - AFP

As duas cirurgias foram executadas por Laurent Lantieri, cirurgião do Hospital Europeu Georges Pompidou, em Paris. Há informações de que Hamon está no hospital se recuperando da segunda cirurgia, realizada em janeiro.

Hamon é livreiro e sofre de neurofibromatose, uma doença genética que pode resultar em deformidades faciais. Em junho de 2010, Lantieri removeu todo o rosto de Hamon, o que inclui suas pálpebras e dutos lacrimais.

Usando material de um doador de 65 anos, o médico substituiu o rosto do livreiro implantando pele suficiente para formar um novo rosto. A operação foi um sucesso. Os únicos traços de Hamon que persistiram foram seus olhos azuis.

"Não sou mais alguém a quem os outros olham com terror e crueldade", ele escreveu em "Você Viu Aquele Cavalheiro?", um livro no qual relata suas experiências.

Mas cinco anos mais tarde, sua nova vida passou por uma reviravolta cruel —e tudo porque ele apanhou um resfriado.

Para tratar a doença, Hamon tomou um antibiótico que obteve sob receita médica. Mas a pílula era incompatível com o tratamento de supressão imunológica que ele seguia por conta do transplante. O corpo de Hamon rapidamente começou a rejeitar seu novo rosto.

Os médicos decidiram adicionar Hamon à lista nacional de pacientes à espera de doadores para transplantes de face. Deixaram claro que, enquanto o primeiro transplante teve por objetivo melhorar a qualidade de vida do paciente, o segundo teria de ser realizado para salvar sua vida.

Parte do primeiro transplante começou gradualmente a morrer. A pele do rosto de Hanson começou a enrijecer. Em novembro, os médicos tiveram de remover todo o seu novo rosto. Lantieri disse que Hamon ficou parecido com um zumbi da série "Walking Dead", depois da remoção do transplante.

"Sem pele, o organismo fica sujeito a repetidos ataques de micróbios, que podem levar a septicemia e, com isso, à morte", disse Lantieri.

Sem rosto, Hamon ficou confinado a um quarto altamente esterilizado, por cerca de dois meses. Não podia se mover, beber, comer ou respirar naturalmente. Não podia ver, tampouco, porque não tinha pálpebras —os médicos fecharam seus olhos artificialmente, para protegê-los.

Para se comunicar, ele ocasionalmente digitava palavras em um tablet. Mas "nunca se queixava, durante a espera. Estava até de bom humor, em alguma medida", disse o ressuscitador anestesista Bernard Cholley à televisão francesa.

"É um sofrimento incrível, que ninguém no mundo havia experimentado até agora", disse Cholley. "Ele merece muito a admiração de todos, por seu estoicismo e capacidade de enfrentar a situação".

Na metade de janeiro, a pele de um novo doador, um jovem de 22 anos do oeste da França que havia sofrido morte cerebral, se tornou disponível. Com aprovação da família, Lantieri removeu o rosto do jovem.

"Nos Estados Unidos, a pessoa precisa se declarar doadora em vida. Na França, seguimos o princípio do consentimento suposto", disse Lantieri em entrevista por telefone na quarta-feira. "Isso nos permite remover órgãos sem autorização. Mas quando se trata do rosto, sempre pedimos permissão da família."

Uma máscara prostética foi feita para o doador. "Mesmo que a família não queira ver o doador, nós queremos, por uma questão de respeito", disse Lantieri. O procedimento já foi usado em Nova York para substituir o rosto de pacientes mortos. "A semelhança é muito grande", disse Lantieri.

Antes que Hamon passasse pelo segundo transplante, os médicos substituíram todo o sangue de seu corpo, um procedimento de um mês de duração, para eliminar quaisquer anticorpos problemáticos remanescentes de tratamentos anteriores.

Em seguida, a equipe médica começou a instalar laboriosamente o novo rosto na cabeça de Hamon. A cirurgia durou quase 24 horas, e envolveu uma equipe de quase 30 pessoas.

O segundo transplante facial pelo qual passou Jérôme  Hamon durou quase 24 horas e envolveu cerca de 30 membros da equipe médica
O segundo transplante facial pelo qual passou Jérôme Hamon durou quase 24 horas e envolveu cerca de 30 membros da equipe médica - Hospital Europeu Georges-Pompidou/AFP

"Foi muito difícil, porque a qualidade dos vasos sanguíneos se deteriorou com o primeiro transplante", disse Lantieri. "Não é como uma cirurgia plástica. Tudo precisa ser reconstruído".

Mas o trabalho valeu a pena. Ao final da operação, o rosto de Hamon já mostrava rubor.

"Eu o reconheço; é ele", disse Arlette Geffroy, a mãe de Hamon, no hospital, depois de ver o filho pela primeira vez ao término do segundo transplante, segundo Lantieri.

Hamon ainda não pode comer, e tem dificuldades para falar. O rosto dele ainda não está perfeitamente encaixado ao seu crânio. Ele perdeu muito peso mas continua fortemente motivado, disse o médico.

"Ele não pode mover o rosto e não tem expressões faciais, ainda, mas tem sensações em seu rosto", disse Lantieri. "Está cansado mas não deprimido. O tratamento mostra que não há rejeição. Estou muito confiante."

O hospital anunciou em comunicado que o paciente, ainda hospitalizado, pôde sair do quarto pela primeira vez e que sua alta definitiva deve acontecer em breve.

"Pela primeira vez no mundo, foi demonstrado que retransplantes são possíveis, em casos de transplantes vascularizados compostos (rosto e mão)", acrescentou o comunicado.

Cerca de 40 transplantes de face já foram realizados no mundo (cerca de um quarto dos quais na França), desde que a francesa Isabelle Dinoire recebeu o primeiro transplante parcial de rosto, em 2005. Seu nariz, lábios, queixo e parte de suas bochechas foram substituídos, depois que ela sofreu um ataque por um cachorro. Dinoire morreu em 2016, aos 49 anos.

Nos Estados Unidos, o primeiro transplante de rosto foi realizado em Cleveland em 2008, em uma mulher cuja identidade não foi revelada. Em 2011, Charla Nash, 62, recebeu um transplante facial completo no Hospital Brigham and Women, em Boston, depois de sofrer um ataque, que dilacerou seu rosto, pelo chimpanzé de estimação de uma amiga, em Stamford, Connecticut, em 2009.

A cirurgia de Hamon faz dele, não só a primeira pessoa a receber dois transplantes faciais e a viver sem rosto por alguns meses como a primeira pessoa capaz de chorar com o uso de vias lacrimais alheias.

Na TV francesa, Hamon disse que ele havia trocado o rosto de um homem de 60 e poucos anos pelo de um jovem de pouco mais de 20. "Tenho 43 anos", ele disse. "O doador tinha 22. Rejuvenesci mais de 20 anos."

Da esquerda para a direita: Jérôme  Hamon, que tem neurofibromatose, antes de seus transplantes; após a primeira cirurgia, em 2010; e depois do segundo, este ano
Da esquerda para a direita: Jérôme Hamon, que tem neurofibromatose, antes de seus transplantes; após a primeira cirurgia, em 2010; e depois do segundo, este ano - Hospital Europeu Georges-Pompidou/AFP

O procedimento completo, incluídos transplante e medicação, custa quase 250 mil euros, ou US$ 300 mil, e o custo foi coberto pelo sistema francês de saúde pública.

A cirurgia de Hamon oferece esperanças a pacientes que sofram de deformidades faciais severas. Mas Lantieri, que já realizou oito dessas cirurgias, disse que isso jamais se tornará uma prática generalizada.

As cirurgias continuam a ser muito delicadas. Por causa da dificuldade de encontrar doadores, do custo e do risco de complicações, não há expectativa de que seu uso se difunda. E transplantes faciais múltiplos provavelmente continuarão a ser ainda mais raros.

"É uma experiência que não quero viver de novo", disse Lantieri. "Nem para ele, nem para mim".

Tradução de Paulo Migliacci

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