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Miguel Srougi

Sobre o aborto, com compaixão

Estudos chancelados pela OMS e pela ONU demonstram que leis restritivas e criminalização não impedem procedimento

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Miguel Srougi

Professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP, é pós-graduado em urologia pela Universidade Harvard, membro da Academia Nacional de Medicina e presidente do conselho do Instituto Criança é Vida

Lutando no meu cotidiano para resgatar seres para a vida, fico desconcertado com a indiferença com que o mundo se posta frente à existência humana. Hoje não me refiro ao horror que nos cerca no cotidiano ou que se espraiou pelo mundo, onde vidas são ceifadas sem perdão e sem comoção. Aqui gostaria de discutir a questão das mulheres e do aborto voluntário, que tem gerado polêmicas enfurecidas baseadas em dogmas e conceitos pouco racionais.

Segundo dados da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), aceitos pela OMS (Organização Mundial da Saúde), até 1,1 milhão de abortos voluntários são realizados anualmente no Brasil, mais de 2/3 deles executados de forma clandestina e insegura. Em decorrência, talvez morram a cada ano 11 mil brasileiras, outras 250 mil sobrevivem marcadas por padecimentos sem fim —sequelas psicológicas e sexuais irreparáveis, esterilidade definitiva, lesões genitais mutilantes ou infecções debilitantes.

Obviamente não preciso explicar quem são essas mulheres. Cerca de 75% pobres, mais de 60% casadas e com filhos, algumas vivendo nos primórdios de sua existência e quase todas incapazes de expressar seus sentimentos. Para piorar, governadas por autocratas que não são gente boa e que há um mês apresentaram projeto de lei propondo prisão por 20 anos para as mulheres que abortassem por decisão própria. As suas Excelências celebrariam com suas bolhas, mulheres vulneráveis morreriam na prisão e seus filhos em casa. Felizmente, o horror foi dissipado, outras mulheres que admiro saíram às ruas, demonstraram sua indignação, a revolta se disseminou pelo país e, em 48 horas, o projeto foi retirado da pauta.

Fotografia mostra muitas pessoas segurando faixas em protesto
Protesto contra o PL Antiaborto por Estupro na avenida Paulista, em São Paulo - Tuane Fernandes - 15.jun.2024/Folhapress

Apesar de todo esse desconforto, ele não supera a angústia que me envolveu em outras épocas. Fiquei marcado pela expressão de pavor daquelas mulheres pobres que, sem outra opção, submetiam-se a abortos imundos e de risco na periferia da cidade, depois recorriam ao HC (Hospital das Clínicas) e, arrebentadas, aceitavam o momento de dor intensa quando, também sem opção, removíamos os restos fetais retidos em seus ventres. Essas e outras razões me levam a defender uma liberalização mais abrangente do aborto voluntário e explico.

Em primeiro lugar, todos os estudos chancelados pela OMS e pela ONU demonstraram que leis restritivas e criminalização não impedem abortos induzidos, só aumentam o número de procedimentos clandestinos inseguros e matam mais mulheres.

A história registra um exemplo obsceno a esse respeito. O ditador Nicolae Ceausescu, ao assumir o poder na Romênia, proibiu e estipulou prisão de dois anos para as mulheres que abortassem voluntariamente e, com isto, produziu duas tragédias sociais imediatas. A taxa de aborto clandestino elevou-se em quase 90%, e, nos orfanatos, apenas 2% das crianças eram realmente órfãos, as demais eram filhos rejeitados por suas mães. Com a queda do regime seguida da liberação do aborto e de programas de proteção à saúde das mulheres que abortavam, o número de óbitos para cada 100 mil nascimentos vivos caiu de 159, em 1998, para 17, em 2017.

Em segundo lugar, o aborto voluntário confunde-se com a história da humanidade e é utópico imaginar que ele possa ser banido —papiros de 1550 A.C. já abordavam o tema. Sempre existirão gestações indesejadas, ilegítimas, arriscadas ou inviáveis. Ao ignorar esta realidade estaremos não só rejeitando o direito de qualquer ser humano governar sua vida, mas também se contrapondo a 20 dos 30 artigos que compõem a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.

Ademais, o que esperar de uma gestação indesejada, levada a cabo em um país esfrangalhado como o nosso? Certamente, criar uma legião indecente de crianças condenadas a viver sem qualquer esperança no porvir.

Em terceiro lugar, não me parece razoável impor a toda a sociedade uma posição dogmática contra o aborto. Essa atitude coercitiva apoia-se em princípios morais abstratos e em interpretações subjetivas de textos sagrados.

Tanto a Bíblia como o Torá não discutem explicitamente se o aborto deve ou não ser permitido. Ademais, muitos líderes religiosos que se opõem ao aborto deveriam ouvir seus fiéis quando se manifestam publicamente. Pesquisa de Álvaro Machado Dias e Hélio Schwartsman, publicada na Folha, (Folha, 23/6/2024) revelou que 57% dos católicos e 52% dos evangélicos são favoráveis ao aborto voluntário em quase todas ou todas as circunstâncias.

Em quarto lugar, reconheço o direito de alguns se manifestarem contra o aborto legal, argumentando que o embrião já é um ser vivo logo após o encontro de um espermatozoide com um óvulo. Contudo, esta interpretação não tem respaldo científico, ao contrário, é um dogma imperfeito. Há mais de 50 anos a ciência mostrou que a morte de uma pessoa para remoção de órgãos em transplantes é definida pela cessação da atividade elétrica cerebral.

Os dados científicos mais consistentes que conheço revelam que as primeiras ondas elétricas do córtex cerebral do embrião humano surgem após a 12º semana de gestação, o que provavelmente define o início da consciência mental e, talvez, dos sentimentos ou dor. Dessa forma, abortos realizados antes da 12ª semana apenas interrompem o crescimento autônomo de um bloco de células inanimadas, como um tumor que se desenvolve em um ser humano, o qual não hesitamos em remover. Aliás, se a fecundação de um óvulo por espermatozoides criasse de imediato um ser vivo, milhares de "abortos" estariam sendo realizados diariamente nas clínicas de reprodução humana em nosso país, que a todo momento descartam embriões congelados não utilizados por casais inférteis.

Pedindo desculpas pelo atrevimento e enfatizando que sou católico e acredito em Deus, confesso que sinto imenso desconforto em imaginar que se possa paralisar o coração do feto já bem formado para induzir abortos em etapas adiantadas de gestação. Por isso, faço três sugestões para as nossas autoridades responsáveis:

1) liberalização do aborto voluntário até a 12ª semana de gestação, em todas as circunstâncias e sempre que a mulher desejar;

2) após a 12ª semana, preservar a legislação atual, que permite o aborto induzido em três situações: risco de vida materna, gravidez relacionada ao estupro e anencefalia;

3) adoção de práticas protetoras para as mulheres que desejarem abortar (informações corretas, disponibilidade e fácil acesso às unidades especializadas, equipes de saúde bem treinadas, instalações seguras e cuidados maternos de qualidade pós-aborto), sem o que as mulheres pobres continuarão morrendo porque o aborto legalizado continuará sendo inseguro.

Termino repetindo Riobaldo, de Guimarães Rosa: "Viver é rasgar-se e remendar-se". Portanto manter-se omisso na questão do aborto voluntário significa afrontar a quintessência da existência humana, ou seja, os sentimentos de compaixão, solidariedade e empatia, que também ajudam a remendar.

Médico, ex-professor titular de urologia da Unifesp e da Faculdade de Medicina da USP, pós-graduado em urologia pela Harvard Medical School, presidente do conselho do Instituto Criança é Vida

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