Descrição de chapéu Venezuela

Venezuelano foge da fome e tenta a sorte no futebol de Roraima

Jogador de 22 anos trocou periferia de Caracas por Boa Vista com a promessa de fazer testes em SP

 
 
Fabiano Maisonnave
Boa Vista

​Diante de 125 espectadores no acanhado estádio Ribeirão, o atacante venezuelano Deivis Jesus Mejias, 22, tinha a última chance para fazer a estreia profissional pelo Real, no último dia 13, uma sexta-feira.

Já desclassificado, o seu time enfrentaria o Progresso, encerrando a participação em 2018 na primeira —e única— divisão do Campeonato Roraimense, que conta com apenas oito equipes.

Incorporado ao time há cerca de um mês, Deivis vinha amargando o banco. Mas a chance de entrar no último jogo da temporada cresceu por causa dos jogadores suspensos e que abandonaram o Real, o que deixou o time com apenas quatro reservas.

Nada tem sido fácil para o jovem jogador desde que trocou a periferia de Caracas por Boa Vista, há dez meses, atraído pela promessa de um treinador venezuelano de levá-lo para testes em São Paulo.

Sem muitas chances na Venezuela —o auge foi jogar em uma equipe amadora da terceira divisão—, ele viu no convite a chance para deslanchar a carreira. De quebra, enviaria dinheiro para reforçar a renda familiar, corroída pela hiperinflação do país.

Deivis trancou o curso técnico de informática e os treinos num time amador. Em 18 de junho do ano passado, cruzou a fronteira com o Brasil junto com outros sete jogadores, misturando-se ao fluxo de milhares de venezuelanos que têm fugindo da fome.

Mas não demorou muito para os jogadores perceberem a furada. “Quase não tínhamos dinheiro e descobrimos que São Paulo não era dobrando a esquina”, conta Deivis, um rapaz alto e magro, que costuma encerrar as suas falas com um sorriso.

Da fronteira, o grupo viajou só os 200 km até Boa Vista, onde se amontoou na quitinete alugada de um amigo do técnico, num total de dez pessoas. “Nós nos acomodamos no chão como Tetris”, brinca.

A ideia era juntar dinheiro em Boa Vista para viajar até São Paulo, mas não houve tempo para o plano: após um mês, o dono do apartamento descobriu a superlotação e despejou o grupo, precipitando a debandada.

Junto com outros três companheiros, Deivis se alojou na casa de um pastor e passou a trabalhar lavando carros, onde ganhava R$ 10 por automóvel, não importava o tamanho.

Depois do expediente, conseguiu uma vaga no treino da equipe sub-20 do Baré, outro time de Boa Vista.

Por três meses, saía do trabalho e caminhava cerca de quatro horas para ir e voltar do campo.

O sacrifício era para enviar dinheiro à família. ”Minha mãe não me dizia, mas sabia que [ela] estava passando mal na Venezuela, e eu tentava administrar e mandar o pouco que eu tinha”, relata.

Deivis tem três irmãos menores —outro se matou recentemente. De pais separados, foi criado pela mãe, uma vendedora, e por um tio, que trabalha instalando antenas.

Além de lavar carros, ele passou a fazer outros bicos pelas ruas de Boa Vista. Vendeu algodão doce e se fantasiou de personagens como Mickey e Senhor Incrível —tirava fotos com crianças em troca de contribuições.

“Enviei tudo o que eu ganhei. Fiquei sem nada, mas os brasileiros têm bom coração, me ajudaram muito.”

Em março, após participar de alguns jogos amadores e amistosos, Deivis foi convidado a ingressar no Real. Sem salários, o acordo se limitava a comida e ao alojamento, uma única sala onde dormem dez jogadores vindos sobretudo do Pará e Amazonas.

A situação não destoa da precariedade do futebol roraimense. Apenas dois dos oito times pagam salários.

Um deles, o Rio Negro, não chega sequer a treinar.

Não há plano de saúde. Deivis diz que não sabe o que aconteceria no caso de uma lesão mais grave.

Recentemente, um jogador do Grêmio Atlético Sampaio organizou uma feijoada para financiar o tratamento da perna quebrada.

Fundado em 2006 e presidido por um policial militar, o Real tem como sede o Instituto Cheiro Verde, que funciona em terreno na periferia cedido pelo governo do estado.

Nos fundos do alojamento, uma área menor do que a de um campo de futebol é a opção de local para treinamento. Não há traves.

Cheiro Verde é o apelido do volante do Real Aliso Meneses, 33. Depois de rodar por times do Norte do Brasil, do Suriname e do Panamá, criou o instituto para estimular o futebol no bairro onde foi criado e voltou a morar.

Além de Deivis, o Real conta também com o zagueiro Angel Ceferino Borges, 23, do grupo original. Outros dois jogadores continuam em Boa Vista, mas apenas trabalham. Os demais já se foram.

Extrovertidos, os dois parecem bem entrosados com os colegas, de quem receberam o apelido de Negão (Deivis) e Veneca. Dizem que são os únicos que usam o chuveiro do quintal —os outros preferem o banheiro.

Na volta do intervalo, Deivis foi chamado para entrar em campo. A situação estava difícil: o Real havia sofrido um gol nos primeiros minutos e teve um zagueiro expulso.

Ao longo dos 45 minutos, participou de algumas jogadas e deu apenas um chute a gol, sem perigo. A partida terminou em 4 a 1 para o Progresso.

“Não foi como eu queria porque não marquei gol”, se lamentou ao final do jogo.

Com o encerramento do campeonato, Deivis ainda não sabe o que fará. Por enquanto, Cheiro Verde disse que ele pode continuar no alojamento. “Terei teto, se Deus quiser.”

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