Morte de Muhammad Ali há 5 anos ainda deixa lacuna de amor em mundo de conflitos

'Falta algo sem ele', diz à Folha o rival e amigo George Foreman

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Eduardo Ohata
São Paulo

Esta quinta-feira (3) marca o aniversário de cinco anos da morte de Muhammad Ali: ouro na Olimpíada de Roma-60 e primeiro tricampeão mundial dos pesados, que “flutuava como uma borboleta e ferroava como uma abelha”.

Muitos consideram o “The Greatest” o maior campeão dos pesados de todos os tempos.

Quem conviveu de perto com Ali, porém, aponta que, em meio à pandemia e o recrudescimento de questões raciais e sociais, o mundo se beneficiaria de outra faceta do lutador: o símbolo do amor fraterno.

“Ele foi o maior atleta de todos os tempos? O maior boxeador?”, repete, de forma retórica, seu rival naquela que é a luta mais famosa de todos os tempos, George Foreman, ao ser questionado pela Folha sobre o status de Ali. “É uma piada reduzir Ali a isso. Ele era muito grande para o limitarmos ao mundo esportivo; pensar assim nos faz subestimar a sua missão.”

Tão marcantes quanto seus combates no ringue foram as batalhas travadas fora dele, como a luta pela igualdade racial. Sua postura contra a Guerra do Vietnã, ao se recusar servir ao exército, custou-lhe sua licença de boxeador --e três daqueles que poderiam ser seus anos mais produtivos na carreira como atleta profissional.

“Nos esportes, Ali mostrou o que um campeão deve ser; e, no mundo real, em seus últimos anos, tornou-se a personificação do amor”, afirma à Folha Thomas Hauser, autor da biografia “Muhammad Ali: His Life and Times”, que conviveu extensivamente com o ex-campeão.

O significado das palavras de Hauser ecoam profundamente em “Big” George, que de amargo rival na famosa “Batalha da Selva” –no Zaire, em 1974, que inspirou o documentário vencedor do Oscar “Quando Éramos Reis” e o livro “A Luta”, de Norman Mailer– tornou-se amigo de Ali.

“Alguns dos melhores momentos da minha vida foram quando estive com o campeão, a melhor pessoa que conheci. Ali possuía tantas qualidades que faziam da Terra um lugar melhor, é certo que falta algo sem ele”, aponta Foreman. “Muhammad realmente almejava que o mundo fosse um lugar melhor e acreditava que sua personalidade poderia ajudar nisso, ele nos mantinha sorrindo.”

“Infelizmente, o mundo [atual] perdeu o significado de sua mensagem; todos sabem que ele se sacrificou por seus princípios, mas não têm ideia de quais eram”, completa o ex-lutador.

De acordo com o biógrafo Thomas Hauser, Muhammad Ali, "no mundo real, em seus últimos anos, tornou-se a personificação do amor” - Andreas Meier - 28.jan.06/Reuters

O biógrafo Hauser, que publicou um texto há alguns anos sobre “o legado perdido de Ali”, "cujo espírito vive em todos nós", faz um apelo para que se recupere a sua mensagem.

“Vivemos em uma era marcada por terríveis divisões entre religiões e culturas; se quisermos evitar o recrudescimento da violência, e até um holocausto nuclear, as pessoas têm que aprender a entender os credos diferentes das outras, encontrar a humanidade em seus inimigos e abraçar as virtudes daqueles que abominam; a compreensão e estudo honesto da vida de Ali ajudariam muito.”

Certamente a mensagem de Ali era de tolerância, não de divisão.

Hauser já havia revelado que algumas filhas de Ali, que se convertera ao islamismo, casaram-se com brancos e que um neto dele passou pelo bar-mitzvá, cerimônia de transição mais importante na vida de um judeu.

A palavra definitiva sobre o legado de Ali, e o tipo de ser humano que foi, fica com “Big George”.

“Qualquer um pode ser um grande atleta ou um grande boxeador; mas seria preciso um milagre para surgir um novo Muhammad Ali”, define.

Epílogo: Ali e eu

Tive uma experiência pessoal com Ali, que ressalta seu caráter humano e generosidade.

Ao acompanhar “in loco” a primeira luta entre Oscar de la Hoya e Shane Mosley, em 2000, no Staples Center, em Los Angeles, dei de cara com Ali, que assistia ao combate com membros de sua família.

Comecei a me aproximar para pedir um autógrafo em uma luva de boxe, mas fui barrado por uma de suas filhas.

Não escondi meu desapontamento e começava a me afastar, quando Ali fez um gesto com as mãos, chamando-me. Olhei para sua filha, que, desta vez, abriu caminho.

Ali pôs a mão no bolso, retirou um “santinho” islâmico e o entregou para mim; ao examiná-lo, vi que estava autografado. Ali me encarou muito de perto e fixamente, por cerca de 10 a 15 segundos, e esboçou um sorriso. Não tive outra reação se não ficar boquiaberto.

Foi, sem dúvida, uma das melhores experiências da minha vida.

Guardei esse tesouro dentro de uma enciclopédia na casa dos meus pais e o deixei lá mesmo após me mudar, afinal, pensei ser um lugar seguro.

Para a minha surpresa, um dia, ao visitar minha mãe, descobri que ela doara a enciclopédia. Irritado, tive como primeira reação querer relatar o que havia ocorrido. E reclamar.

Foi então que refleti: “O que Ali teria feito em meu lugar?”.

Decidi nada dizer, evitar discussões e não deixar aborrecida quem tanto já havia feito (e faz) por mim. Revelo só agora, após muitos anos, mas acredito ser por uma boa causa.

Ali pode não estar mais entre nós, mas sou grato por sua mensagem não ter se perdido em mim.

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