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Biografia expõe o homem que carregou o fardo da lenda Muhammad Ali

Em quase 800 páginas, Jonathan Eig esmiúça lenda do boxe e consegue trazer novidades

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Eduardo Ohata
São Paulo

Muhammad Ali: Uma vida

  • Autoria Jonathan Eig
  • Editora Record (2020)
  • Páginas 770

Um dos principais personagens da história do esporte, senão o maior, o polêmico tricampeão mundial dos pesos-pesados Muhammad Ali tornou-se tema de inúmeros livros, e provavelmente continuará sendo.

A biografia “Muhammad Ali: Uma Vida”, de Jonathan Eig, lançada no Brasil pela Editora Record no fim de 2020, traz ao longo de quase 800 páginas fatos novos, fruto de pesquisas e de mais de 600 entrevistas conduzidas com mais de duas centenas de pessoas. Também tem o mérito de não ignorar o material já publicado sobre o personagem, ao realizar um trabalho de curadoria.

Trata-se de uma iniciativa relevante, dado que biografias anteriores trouxeram variados recortes de sua trajetória que se sobrepunham, por vezes com narrativas contraditórias. Entre as obras abordadas estão a autobiografia “O Maior: Minha História”, de Ali com Richard Durham; “O Rei do Mundo” (David Remnick); e “Muhammad Ali: His Life and Times” (Thomas Hauser).

Bem-escrito e de agradável leitura, “Muhammad Ali: Uma Vida” não se concentra exclusivamente nos feitos do pugilista sobre os ringues. O pontapé, ou no caso, a combinação de golpes inicial da narrativa se baseia em uma minuciosa pesquisa da árvore genealógica de Ali.

Daí emergiram fatos desconhecidos, inclusive pelo próprio Ali, sobre seus antepassados. Seu bisavô, John Clay, foi provavelmente o filho não-reconhecido do dono de uma fazenda de escravos, e seu avô, Herman Heaton Clay, cumpriu pena por um assassinato ligado ao jogo.

Preciosismo do autor? Não. Tudo se encadeou para justificar o discurso do pai de Ali, Cash, que reclamava da exploração dos negros pelos brancos e orientava que o filho não se envolvesse com mulheres brancas.

O contexto que moldou Ali é fartamente amparado por pesquisa dos documentos da época, com dados do censo sobre a população negra e entrevistas que revelam por que a Justiça ignorava casos de violência doméstica na comunidade.

Sem lançar mão de termos técnicos ou argumentos intrincados, o autor faz um estudo sociológico, psicológico e traz as motivações de Ali, membros da família e entourage, e de quem cruzou o seu caminho.

Em “Muhammad Ali: Uma Vida”, os personagens abordados, mesmo os coadjuvantes, têm uma história —frequentemente é explicado de onde vieram e qual foi seu destino. A leitura demanda algum fôlego, não só pelas quase 800 páginas, mas pela quantidade e qualidade das informações reunidas.

Em situações nas quais Ali exibia comportamentos contraditórios, que não foram poucas —como quando jurava fidelidade à Nação do Islã ao mesmo tempo que insistia em prosseguir com a carreira esportiva, em choque com o desejo do líder Elijah Muhammad—, o autor abre uma variedade de possibilidades e deixa a cargo do leitor sua interpretação.

O autor, que já havia escrito outros livros, entre eles obras sobre a prisão do mafioso Al Capone e sobre Jackie Robinson, primeiro jogador negro na Major League Baseball na era moderna, arregaçou as mangas. Um exemplo? Munido de uma fita métrica, conferiu quanto media o quarto que o jovem Cassius Clay dividia com seu irmão Rudy.

Como diferencial em relação às obras anteriores, o autor lançou mão da ciência e tecnologia. Eig contratou uma empresa especializada em contagem de socos desferidos e acertados, o mesmo recurso disponível nas lutas transmitidas atualmente, para compilar as estatísticas dos combates de Ali.

Também acionou cientistas especializados em fala, da Universidade do Estado do Arizona (EUA), para rever as aparições de Ali na TV em gravações, em ordem cronológica, e avaliar as mudanças na velocidade de sua fala. O objetivo foi mostrar se e de que maneira o pugilismo afetou suas habilidades cognitivas.

Na edição nacional de “Muhammad Ali: Uma Vida”, vale destacar a tradução de Maria Lúcia de Oliveira, que preservou, em forma de notas no rodapé, as versões originais em inglês dos famosos poemas de Ali que permitem ao leitor experimentar as rimas, além de manter os palavrões e incluir notas explicativas para termos que não fazem parte da realidade do público brasileiro.

O Ali retratado na biografia é de contradições profundas, quase um retrato sem rosto: justo, generoso, esperto, cruel, machista, tolo, um ativista dos direitos dos negros que se tornou apolítico, vaidoso, porém com demonstrações de humildade.

Ao longo da leitura, fica a impressão de que a trajetória de Ali não seguiu um plano, mas que ele se deixava levar pelos interesses de terceiros, pelas circunstâncias ou pelo acaso.

A narrativa o retira do pedestal de super-herói e o coloca como um homem comum obrigado a suportar o fardo de ser a lenda Muhammad Ali. Mas nunca deixa de transparecer uma boa pessoa, cujo maior desejo era mais ser amado do que admirado, generoso mesmo com estranhos.

Certamente “Muhammad Ali: Uma Vida" não será a derradeira obra sobre o ex-campeão, vide nos últimos anos a publicação de livros sobre seu relacionamento com Malcon X e o amigo Bundini Brown, mas com certeza é uma das mais completas.

Altamente recomendado para quem quer conhecer mais sobre Ali, a década de 1960 e o movimento negro, ou simplesmente para quem gosta de uma boa leitura.

Facetas do homem Muhammad Ali

Infidelidade

Muhammad Ali, segundo múltiplos relatos de variadas fontes em sua biografia, era conhecido por manter relacionamentos com diversas mulheres simultaneamente, mesmo enquanto esteve casado.

Sua segunda mulher, Belinda, que posteriormente mudou de nome para Khalilah Camacho-Ali e alega ter sido vítima de episódios de violência doméstica, conta que Ali a fazia “agendar” seus encontros com as amantes em motéis e ameaçava tornar pública sua cumplicidade se pedisse divórcio ou contasse a repórteres sua versão da história.

“O problema foi quando começou a trazê-las para casa. Certa vez, ele [Ali] me pediu para ir ao supermercado, mas voltei porque havia esquecido minha carteira, e então vi a mulher na minha cama. Senti como se todo meu corpo estivesse pegando fogo... As crianças estavam no final do corredor. Mas ele não se importava. Ele é Muhammad Ali, pode fazer o que quiser”, afirmou Belinda.

Filha de Ali com sua terceira esposa, Verônica, Laila Ali lamenta esse aspecto da personalidade do pai. “Às vezes [quando ainda estava casado com Verônica], ele nos levava quando ia visitar o apartamento dela [Lonnie, que se tornaria sua quarta mulher]... Na época, não sabia de nada errado. Levei anos para perceber a inadequação de um homem casado apresentando os filhos a uma ‘amiga especial’ como Lonnie.”

Mau negociante

Quase no final de sua carreira, Ali se deu conta de que não tinha dinheiro suficiente para se aposentar. Como um dos dois atletas mais populares no mundo chegara a essa situação?

Vários episódios relatados em sua biografia mostram quão fácil era tomar vantagem de sua ingenuidade e generosidade com os “amigos”. Seu “manager” Herbert Muhammad levava entre 30% e 40% das bolsas das lutas de Ali, um percentual considerado excessivo. Depois disso, Ali ainda pagava a Receita Federal e demais despesas de luta, ficando só com o que restava.

Pela penúltima luta de sua carreira, contra o então campeão Larry Holmes, quando Ali precisava mais do que nunca do dinheiro, o promotor Don King acertara pagar 8 milhões de dólares a Ali, mas ficou devendo 1,2 milhão.

Quando Ali foi cobrá-lo, o empresário propôs que levasse 50 mil em dinheiro vivo, mas perdoasse King do restante da dívida. O atleta assim o fez, assinou um recibo e ligou para Michael Phenner, advogado com boas intenções que o representava, para contar o que fizera. Phenner, ao saber do que ocorrera, chorou.

Castigo desnecessário

Dados levantados para a biografia mostram que os anos finais de sua carreira, quando sua principal motivação era a necessidade de levantar dinheiro, foram cruciais em relação à saúde de Muhammad Ali.

Segundo levantamento da empresa contratada para compilar as estatísticas dos combates de Ali, antes de ter a licença de pugilista cassada, o jovem Ali recebeu em média 11,9 socos por assalto. Em suas dez lutas finais, essa média subiu para 18,6 golpes por assalto.

Em 12 de suas primeiras apresentações, recebeu menos de 1.100 socos. Só em suas quatro derradeiras lutas foram os mesmos 1.100 golpes recebidos.

Logo que se aposentou, Ali já apresentava fala arrastada, rigidez do pescoço, movimentos lentos e, por vezes, esquecia quem era o interlocutor para quem tinha ligado.

Segundo cientistas especializados em fala da Universidade do Arizona, um adulto normal teria pouca ou nenhuma diminuição no ritmo da fala entre os 25 e 40 anos, mas Ali experimentou queda de mais de 26% no período.

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