O Qatar teve a Copa do Mundo que queria

Durante um mês, o país foi o centro do mundo, realizando uma façanha que nenhum de seus vizinhos havia conseguido

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Tariq Panja
Doha (Qatar) | The New York Times

Afinal, o Qatar conseguiu o que queria.

O minúsculo Estado desértico, uma península em forma de polegar, almejava ser mais conhecido, ser um jogador no plano mundial, quando em 2009 lançou o que parecia uma aposta improvável para sediar a Copa do Mundo de futebol masculino, o evento esportivo mais popular da Terra. Organizar o torneio custou mais do que qualquer um poderia imaginar —em dinheiro, em tempo, em vidas.

Mas na noite de domingo (18), enquanto os fogos de artifício enchiam o céu acima de Lusail, enquanto os torcedores argentinos cantavam e sua estrela, Lionel Messi, sorria segurando o troféu que esperou a vida inteira para tocar, todo o mundo conhecia o Qatar.

Seleção argentina comemora a conquista do título da Copa no centro do gramado do estádio Lusail
Seleção argentina comemora a conquista do título da Copa no centro do gramado do estádio Lusail - Jack Guez - 18.dez.22/AFP

O desfecho espetacular —uma final dos sonhos entre Argentina e França; um primeiro título da Copa do Mundo para Messi, o melhor jogador do mundo; uma partida vibrante resolvida após seis gols e uma disputa de pênaltis— garantiu isso. E, como que para ter certeza, para colocar a marca final do país na primeira Copa do Mundo no Oriente Médio, o emir do Qatar, xeque Tamim bin Hamad al-Thani, parou um radiante Messi enquanto ele se dirigia para receber o maior troféu do esporte e o puxou para trás. Havia mais uma coisa que precisava ser feita.

Ele puxou um bisht com franjas douradas, a capa preta usada no Golfo em ocasiões especiais, e envolveu os ombros de Messi antes de lhe entregar o troféu de ouro de 18 quilates.

A celebração encerrou uma década tumultuada para um torneio concedido em um escândalo de suborno; manchado por alegações de abusos aos direitos humanos e pelas mortes e ferimentos sofridos pelos trabalhadores migrantes contratados para construir a Copa do Mundo de US$ 200 bilhões (R$ 1,049 trilhão, na cotação atual); e obscurecido por decisões controversas sobre tudo, desde bebidas alcoólicas até braçadeiras.

No entanto, durante um mês, o Qatar foi o centro do mundo, realizando uma façanha que nenhum de seus vizinhos do mundo árabe havia conseguido. Algo que às vezes parecia impensável desde que o então presidente da Fifa, Joseph Blatter, fez o impressionante anúncio em uma sala de conferências em Zurique, em 2 de dezembro de 2010, de que o Qatar sediaria a Copa do Mundo de 2022.

É improvável que o esporte tenha um anfitrião tão questionável novamente em breve. O Qatar talvez esteja entre os anfitriões mais inadequados para um torneio do porte da Copa do Mundo, um país tão carente de estádios, infraestrutura e história que sua candidatura foi rotulada de "alto risco" pelos próprios avaliadores da Fifa. Mas aproveitou a única matéria-prima que tinha em abundância: dinheiro.

Apoiado por recursos financeiros aparentemente inesgotáveis para alimentar suas ambições, o Qatar embarcou num projeto que exigia nada menos que a construção, ou reconstrução, de todo o país a serviço de um torneio de futebol de um mês.

Esses bilhões foram gastos dentro de suas fronteiras —sete novos estádios foram construídos e outros grandes projetos de infraestrutura foram terminados com enormes custos financeiros e humanos. Mas, quando isso não foi suficiente, também gastou generosamente fora de seu território, adquirindo times e direitos esportivos por bilhões de dólares e contratando estrelas e celebridades do esporte para apoiar sua causa.

Tudo isso estava em exibição no domingo. No momento em que a partida final foi disputada no estádio Lusail de US$ 1 bilhão (R$ 5,24 bilhões), o Qatar não poderia perder. O jogo estava sendo exibido em todo o Oriente Médio pela beIN Sports, gigante da transmissão esportiva criado após a conquista dos direitos de hospedagem da Copa do Mundo pelo país. Também podia reivindicar os dois melhores jogadores em campo, o argentino Messi e a estrela francesa Kylian Mbappé, ambos contratados pelo clube francês Paris Saint-Germain, que, na prática, é propriedade do Qatar.

Mbappé, o primeiro a marcar três gols numa final em mais de meio século, terminou o jogo sentado na grama, consolado pelo presidente Emmanuel Macron, da França, convidado do emir, enquanto os jogadores argentinos dançavam em comemoração ao redor dele.

A competição apresentou enredos atraentes —e às vezes preocupantes— desde o início, com a abertura intensamente política no estádio Al Bayt, um enorme local projetado para parecer uma tenda beduína. Naquela noite, o emir do Qatar se sentou lado a lado com o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, governante de fato da Arábia Saudita, menos de três anos depois que este último liderou um bloqueio punitivo ao Qatar.

Haveria também outros desafios, alguns criados pelo próprio Qatar, como a proibição repentina da venda de álcool dentro dos perímetros do estádio apenas dois dias antes do primeiro jogo —uma decisão de última hora que deixou a Budweiser, antiga patrocinadora do órgão mundial do futebol, a Fifa, fumegando na lateral.

No segundo dia do torneio, a Fifa esmagou uma campanha de um grupo de times europeus que usaria braçadeiras de capitão para promover a inclusão, parte das promessas feitas a grupos de campanha e críticos em seus países de origem. E então o Qatar anulou os esforços dos torcedores iranianos para destacar os protestos políticos que ocorrem em seu país.

Mas dentro do campo a competição rendeu. Houve grandes gols e grandes jogos, reviravoltas impressionantes e uma abundância de resultados surpreendentes que criaram novos heróis, principalmente no mundo árabe.

Primeiro foi a Arábia Saudita, que agora pode dizer ter derrotado o campeão da Copa do Mundo na fase de grupos. O Marrocos, que havia chegado apenas uma vez à fase eliminatória, tornou-se o primeiro time africano a avançar para as semifinais, conseguindo uma série de vitórias quase inacreditáveis contra pesos-pesados do futebol europeu: Bélgica, Espanha e Portugal, de Cristiano Ronaldo.

Esses resultados provocaram comemoração em todo o mundo árabe e em algumas das principais capitais europeias, ao mesmo tempo em que forneceram uma plataforma para os torcedores no Qatar promoverem a causa palestina, a única intromissão na política que as autoridades do Qatar não tentaram desencorajar.

No final do torneio, a maioria dos torcedores havia ido embora, deixando os argentinos —uma população temporária estimada em 40 mil— para fornecer o pano de fundo sonoro do jogo final. Vestidos com listras azuis e brancas, eles convergiram para o estádio Lusail, criando o tipo de atmosfera autêntica de Copa do Mundo —saltando e cantando durante 120 minutos de jogo, e muito depois— que nenhuma riqueza do Qatar poderia comprar.

Eles conseguiram exatamente o que queriam da Copa do Mundo. E o Qatar, também.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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