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Valdinei Ferreira

Jornalismo está despreparado para falar sobre a fé e os esportes

Acreditar em Deus não é garantia de medalhas para atletas, assim como professar ateísmo não é garantia de bom jornalismo e isenção de preconceitos

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Valdinei Ferreira

É sociólogo, pastor presbiteriano independente e pesquisador na área de espiritualidade e saúde mental

A cobertura de Paris-2024 tem demonstrado que quem escreve sobre esportes não entende quase nada da religião evangélica, crença preferida por ampla parcela dos brasileiros pobres. Isso é um problema, considerando o número de atletas –inclusive medalhistas– que são cristãos.

"Crentismo" foi o termo utilizado pelo jornalista Luís Augusto Símon (Menon), da revista Fórum, para abordar as convicções e atitudes religiosas da skatista Rayssa Leal e das judocas Larissa Pimenta e Odette Giufridda.

A questão central suscitada por ele é a seguinte: "Meu ponto é que a religiosidade extrema dos evangélicos serve como anulação do ser humano, de suas potencialidades e qualidades. O que adianta Rayssa Leal ter treinado se Deus decidiu que ela não teria prata como na última Olimpíada".

Rayssa Leal manda mensagem religiosa em sinais antes de sua apresentação em Paris-2024 - Mathilde Missioneiro - 28.jul.24/Folhapress

Atribuir a Deus o êxito pela conquista da medalha –na linguagem da devoção evangélica "dar a glória a Deus"– seria "crentice". Embora o jornalista não tenha dito explicitamente, está implícito que isso seria uma idiotice.

Mas será que atribuir a Deus o resultado de uma conquista ou de uma derrota significa que o atleta não tem consciência dos fatores físicos e técnicos envolvidos?

Secularidade absoluta ou crença cega são posições raramente encontradas no dia a dia das pessoas, como afirma Peter Berger no livro "Múltiplos Altares da Modernidade". Os indivíduos transitam entre o discurso secular, que reconhece as causas humanas e históricas, e o discurso religioso que atribui a Deus sucesso ou derrota.

Rayssa, Larissa e Odette sabem que só estão nas Olimpíadas de Paris porque ralaram muito. Não é diferente com Rebeca Andrade, a estrela da ginástica. Todas elas atribuem o sucesso à combinação entre fé e treinamento árduo.

A mente do crente, ao contrário do que o jornalista sugere, não é cheia de "crentismo". A crença religiosa, longe de anular as potencialidades e qualidades humanas, frequentemente funciona como um elemento que desperta e mantém a disciplina na vida pessoal e profissional.

O livro "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", de Max Weber, mostra que os primeiros empreendedores capitalistas não eram movidos apenas pelo desejo de enriquecer ou conquistar a fama. Eles eram motivados, segundo Weber, pelo desejo de glorificar a Deus por meio do trabalho.

Trabalhar arduamente, guardar dinheiro e usar o tempo do modo mais produtivo possível, comportamentos racionais típicos desses primeiros capitalistas, eram inseparáveis da religiosidade deles. Crença religiosa e conduta racional, além de serem compatíveis, costumam andar de mãos dadas.

A disciplina racional que ajudou a construir o mundo moderno nasceu na ética protestante daqueles que, como Rayssa, Larissa, Odette e Rebeca, tinham em mente que viviam para dar glória a Deus.

Quando atletas cristãos atribuem suas conquistas a Deus, não significa que estejam se autodesprezando. O conceito de divindade que anima essa espiritualidade evangélica não é de um ser celestial que exige que seus súditos se anulem e massageiem seu ego o todo tempo. Trata-se mais do vínculo de reciprocidade estabelecido numa relação entre pai e filhos. O atleta pensa: Deus me deu a vida, a saúde e o talento, portanto, é justo que eu reconheça a participação dele nas minhas conquistas.

Por fim, o jornalista Menon afirma: "Eu sou uma pessoa sem religião, mas respeito todas. Não dou dinheiro a crente e não invado terreiros onde se prática religião afro-brasileira". Enquadrar as expressões religiosas das atletas olímpicas nos estereótipos de que todo crente é explorado financeiramente pelos pastores e intolerante com as religiões de matriz africana, como ele faz, não soa nem um pouco respeitoso com a religião evangélica.

Eu não sou ateu, mas gosto de ler obras de alguns ateus. Dos antigos, Friedrich Nietzsche, dos contemporâneos, Alain de Botton. Crente que sou, jamais me atreveria a opinar sobre como deve se comportar um ateu quanto ao seu grau de ateísmo. No máximo, quando converso com ateus, gosto de lembrar Nietzsche: "... ó Zaratustra, tu és mais devoto do que acreditas, com uma tal descrença! Foi algum Deus em ti que te converteu a teu ateísmo".

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