Ativista americano diz que a filantropia está em crise no mundo

Em visita ao Brasil a convite do Instituto Elos, escritor e filantropo Bob Stilger critica poder exacerbado de funcionários de fundações

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São Paulo

Para o ativista e escritor americano Bob Stilger, 75, a filantropia está em crise no mundo.

Autor do livro "AfterNow: When We Cannot See the Future, Where Do We Begin" (2017), ele esteve no Brasil onde participou da 25ª edição do programa Guerreiros Sem Armas (GSA), promovido pelo Instituto Elos, na Baixada Santista (SP).

O ativista e escritor americano Bob Stilger, um homem de cabelos grisalhos, usando um chapéu preto e uma camisa azul, está falando em um microfone. Ele está em um ambiente interno, com paredes claras e um fundo que inclui uma parede vermelha. Ao seu redor, há várias pessoas, incluindo mulheres de diferentes etnias, algumas com cabelos longos e outros com tranças, que parecem atentas ao que ele está dizendo.
O ativista e escritor americano Bob Stilger participa da 25ª edição do programa Guerreiros Sem Armas, no Cefas (Centro de Formação para o Apostolado de Santos) - Estudio Barbarella/Instituto Elos

Nos cinco dias em que passou com as 69 pessoas de 12 países do mundo e de sete estados do Brasil que participam do GSA --o programa termina neste sábado (27 de julho)–, Stilger compartilhou experiências que viveu mundo afora, em especial no Japão, onde presenciou o triplo desastre em 2011 (terremoto, tsunami e acidente nuclear) e como a população do país reagiu a eles, e fez reflexão sobre a filantropia.

Segundo ele, apesar de ter as melhores intenções, a filantropia hoje mantém os sistemas como estão. "Fundações e doadores individuais estão percebendo que as mudanças necessárias agora exigem que eles estabeleçam elos com os parceiros. Há desequilíbrios de poder quando desconsideram a expertise das pessoas locais e privilegiam a dos funcionários das fundações."

Fundador e codiretor da NewStories, com doutorado em Aprendizagem e Mudança Humana em Sistemas Humanos pelo California Institute of Integral Studies, Stilger também atua como filantropo e usa seus recursos para construir comunidades resilientes. Com passagens por Zimbábue, África do Sul, Índia, Paquistão, Brasil, México, Canadá, EUA e Japão, nos últimos seis anos atua com sociedades devastadas por incêndios na América do Norte.

Bob diz ter constatado que só a ação coletiva reergue sociedades devastadas. "Não podemos chegar a essas regiões, no Japão ou no Rio Grande do Sul, e dizer o que tem ser feito. Tem que ser construído com escuta das pessoas que vivem lá, para entender seus sonhos e o luto que vivem."

Por que há crise na filantropia global? O problema é que a filantropia, apesar das melhores intenções, mantém os sistemas como estão. Ela se baseia na separação: ‘Temos dinheiro, e você receberá parte dele porque provou para nós que tem uma ideia boa o suficiente’. Mas a riqueza segue nas mãos de poucos. Um exemplo são os fundadores do eBay. Eles criaram o Grupo Omidyar e investiram fortunas para mudanças transformadoras. Depois, contaram que avaliadores concluíram que eles fizeram enorme bem, mas nada mudou. Perceberam que eles como filantropos precisavam mudar.

Agora trabalhamos em projeto com a Missouri Foundation for Health. Eles firmaram compromisso de 20 anos pela justiça alimentar em Missouri (EUA). Eles reconhecem que as pessoas estão com fome hoje e estarão com fome amanhã. E essas necessidades precisam ser abordadas de forma que leve à transformação de todo o sistema de desigualdades alimentares. E que será preciso, para obter impacto, usar os recursos da fundação para além da expertise de quem comanda a fundação. Para alcançar a justiça alimentar em Missouri, a Missouri Foundation for Health sabe que precisa se transformar.

O que está mais presente em áreas de desastres climáticos? Essas pessoas vivem um dia de cada vez e se perguntam: ‘O que eu quero aqui?’, ‘O que posso fazer com o que tenho aqui?’. Mesmo nas situações mais extremas, reconhecem espaços para reconstruir a ideia de comunidade que as sustenta: aquele sentimento de "eu pertenço a este local". Isso é significativo para pensar em cenários permeados por medo e angústia de que nem tudo possa ser resolvido no futuro. Por exemplo, desastres como incêndios florestais, inundações, furacões, terremotos, produzem necessidades catastróficas. Na maioria das partes do mundo, as agências governamentais responsáveis por responder a essas necessidades têm recursos limitados e compromissos de tempo. Logo, elas partem e as comunidades são deixadas por conta própria para se curarem e se reconstruírem. Trabalhamos para apoiar as comunidades nesse processo de cura e reconstrução.

Um homem idoso está de perfil, sorrindo e usando um chapéu preto. Ele veste uma camiseta azul e óculos. Ao fundo, há uma parede clara e uma iluminação suave. Outra pessoa, parcialmente visível à direita, parece estar conversando com ele.
O ativista e escritor americano Bob Stilger participa da 25ª edição do programa Guerreiros Sem Armas, no Cefas (Centro de Formação para o Apostolado de Santos) - Estudio Barbarella/Instituto Elos

Como enfrentar essas grandes crises?
O planeta está apontando para a necessidade de práticas regenerativas. No Japão, perguntei às pessoas: "O último verão foi o mais quente já registrado. Você acha que este verão será mais ameno?". Ninguém acredita que a situação vá melhorar. Há tantas evidências de que precisamos parar de fazer o que estamos fazendo. E mudar isso vai levar muito tempo –o resto de nossas vidas e o das vidas de nossos filhos. Tentar resolver as nossas "policrises" só drena toda a nossa energia. Então, como criamos ilhas de integridade? Quando acreditamos que o que fazemos importa e faz diferença para os outros. Essa é a energia com a qual trabalho.

O que diferencia o Brasil no contexto da crise climática?
O Brasil é maravilhoso, tem diversidade. Em minha primeira visita ao Brasil, fui a um bairro em São Paulo marcado por tráfico e prostituição. E perguntei a um jornalista: "O que significaria se o propósito deste bairro fosse ajudar as crianças a aprender?" Anos depois, esse jornalista me mostrou como o bairro havia mudado. Ele se mobilizou para procurar espaços para as crianças aprenderem, buscou empresas e até atraiu artistas para o bairro. Eu fiquei surpreso. E ele me disse: "Você sabe por que faço isso? Porque me traz prazer e alegria". E toda vez faço essa pergunta a alguém que faz algo incrível no Brasil a resposta é: ‘Porque me traz alegria’. E essa alegria para encontrar um caminho à frente é a grande contribuição do Brasil para o mundo.

A cultura de um povo influencia sua capacidade de superar crises?
Eu não sei o que fazer com Gaza, com a Ucrânia. Nem o que fazer com as grandes migrações de pessoas devido à crise climática. E elas precisam ir para algum lugar para recomeçar. Eu não sei o que fazer com a crise de liderança nos EUA. O que é importante, para mim, é estar conectado com as pessoas. Fui convidado para muitas comunidades, culturas e contextos diferentes. Não há plano mestre que nos tire da crise atual. No que tenho fé é em dar as mãos e um passo juntos a um futuro que não podemos ver. Ao fazemos isso, em qualquer cultura, encontramos caminhos. E, quando nos apaixonamos por ambiguidade e incerteza, há novas possibilidades.

Como avalia a participação de outros atores nesse processo?
Um amigo meu disse uma vez que "a maioria das pessoas não acorda de manhã querendo piorar o mundo". Então há quem acorde e queira piorá-lo. E quem, sem intenção, o piore. Mas não é por isso que estamos vivos. O gene da sobrevivência está em nosso DNA. Enfrentamos crises, colapso, destruição, e aprendemos a encontrar um caminho. Isso é algo que sabemos. Não podemos só dizer que tudo é culpa do capitalismo. A regeneração após o colapso leva tempo.

E a única maneira de fazer isso é com esse espírito brasileiro de alegria. Se for só trabalho duro, vamos desistir. Após os desastres no Japão, o que mais ouvi foi 'Gambarimasu', que significa 'Vamos tentar com afinco'. Nos primeiros dez anos após os triplos desastres, as pessoas diziam 'Eu vou tentar'. Mas, quando retornei ao Japão após a Covid, mudou. Elas falavam: 'Sabe, agora estou fazendo coisas que me trazem alegria'. Então, aprender com a vida e ouvir os outros são o caminho.

O que impede alguém de agir em comunidade?
Há obstáculos, como luto, traumas passados, incluindo os geracionais, disparidades de riqueza, incapacidade de imaginar que algo mais é possível e um senso de separação em vez de conexão. Mas há ventos a nosso favor: a capacidade de enfrentar adversidades, de ouvir uns aos outros com generosidade. Nosso amor e, em especial no Brasil, a alegria nos ajudam a encontrar o caminho.

Como é voltar para casa, nos EUA?
Nos EUA, temos desafios: nossa política nacional, nossas disparidades de riqueza, nossa exploração histórica de negros e povos indígenas, que é uma ferida profunda em nossa alma, e nossa dependência da riqueza material, que contribui para a catástrofe climática. E ainda estamos aprendendo a nos voltar um para o outro. Eu moro numa cidade no leste do estado de Washington, Spokane, para onde me mudei há 50 anos. Meu anseio por comunidade me levou a ser o fundador de uma pequena vila perto do centro de Spokane, a Cohousing de Spokane. Somos 39 famílias com 75 pessoas de 3 a 82 anos. Cada um de nós vive em casas separadas, mas temos a grande casa comum onde cozinhamos e fazemos refeições juntos, além de rir, brincar e aprender. Um terço de nossa terra é um pomar onde cultivamos parte de nossa comida. Lá nos apoiamos. Spokane Cohousing é o que, na NewStories, chamamos de Ilha da Integridade, onde as pessoas voltam umas às outras para construir o que desejamos viver.


Raio-X

Bob Stilger, 75
É escritor, ativista e filantropo. Doutor em Aprendizagem e Mudança Humana em Sistemas Humanos pelo California Institute of Integral Studies, é fundador e codiretor da NewStories e autor de "AfterNow: Quando Não Podemos Ver o Futuro, Por Onde Começamos", entre outras publicações.

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