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15/10/2000 - 12h00

Cachorros ajudam seus donos a ter um vida melhor

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KIYOMORI MORI
da Revista da Folha

A cena é assustadora: Nagoya, uma rotweiller de 55 quilos, deixa o portão do canil e corre em direção a um grupo de crianças. Em segundos, ela salta sobre Leonardo Raposo, 17, portador de problemas emocionais graves. Mas não há sangue nem mordidas; só festa, gargalhadas e lambidas.

Nagoya pertence ao canil Cambará, e a visita aos animais é uma das atividades da escola Refazenda, voltada para crianças portadoras de deficiência. "Esse convívio é um dos melhores recursos terapêuticos em casos assim. Elas preferem o canil ao teatro, a antiga vedete entre as atividades da escola", conta a psicóloga e diretora Maria Lúcia Piveli, 38. As crianças podem brincar, passear com os cães e dar nomes ao filhotes ("uma excelente atividade de fonoaudiologia e afetividade", segundo Maria Lúcia).

Mas os efeitos positivos da convivência com cachorros são bem mais abrangentes dos revelados na dobradinha Leonardo/Nagoya. Dezenas de pesquisas e estudos realizados ao redor do mundo mostram que pessoas que têm cães vivem mais e com melhor qualidade de vida do que as que não têm.

"Com todos os avanços da ciência, é incrível o que o "beijo" de um cão ainda pode fazer. Os benefícios à saúde são tão grandes que eles deveriam ser indicados a todos. Deveria ser rotina em todos hospitais a "prescrição" de animais de estimação para pessoas doentes", disse à Revista o médico Larry Dossey, consultor de medicina alternativa do Instituto Nacional de Saúde dos EUA e autor de livros sobre o tema ("Reinventing Medicine", à venda na livraria virtual Barnes and Noble por US$ 11,20).

Dossey não está sozinho. Na Austrália, em 1997, uma pesquisa acompanhou 2.805 pessoas por 89 meses. Foi observado que as mulheres que tinham animais de estimação e que precisavam de antidepressivos tomavam doses menores do que as que não tinham. Um outro estudo, do médico Aaron Katcher, da Escola de Medicina Veterinária da Universidade da Pensilvânia (EUA), indicou que o contato de hipertensos com animais de estimação e aí vale até um peixinho de aquário abaixa a pressão arterial. Mas o cachorro é mesmo o predileto.

Segundo levantamento do Ibope e do site Petsite (www.petsite.com.br), 59% da população tem bicho de estimação e destes, 44% (cerca de 41 milhões) escolheram o cão, contra 16% que preferem os gatos. "O cão é quase um ser humano. É como ter um amigo que se preocupa e tem grande amor por você. E amor, todos sabem, faz bem à saúde", declara Dossey.

Alguém se lembrou do clássico "o cachorro é um ser humano como qualquer outro", cunhado pelo ex-ministro do trabalho Antônio Rogério Magri ao ser flagrado usando carro oficial para levar suas cadelas ao veterinário? Pois é, segundo esses entusiastas, Magri estava certo.

Conheça abaixo algumas estórias de pessoas que encontraram no cão um verdadeiro amigo e resolveram problemas pessoais.

Crianças e idosos Quinzenalmente, a especialista em comportamento animal Hannelore Fuchs e uma equipe de voluntários visitam pacientes no Hospital da Criança, inclusive alguns internados na UTI. Foram 1.600 visitas em dois anos, sem nenhum acidente registrado. "Os animais são treinados, vacinados e escolhidos a dedo. Além disso, para cada bicho, um voluntário acompanha passo-a-passo o contato do paciente com o cachorro."

Christina Rosa de Paola, médica do hospital infantil, aprova. "O animal ajuda a integrar as crianças, quebrando o gelo entre elas", afirma. Nos Estados Unidos, o serviço existe há mais de 20 anos, engloba 2.500 equipes de voluntários, em 45 Estados, e atende 350 mil pessoas por ano.

Apesar dos bons resultados, alguns projetos enfrentam resistências, principalmente nos primeiros contatos. "Muitas pessoas acham que o bicho vai transmitir doenças, o que não ocorre. A visita reduz o isolamento e a solidão dos idosos", afirma o zootecnista Alexandre Rossi, criador do projeto Cão Terapeuta, que visita semanalmente asilos e locais que atendem crianças com câncer.

"Alguns idosos dizem que o cão é a única "pessoa' que os visita, que até os familiares já se esqueceram deles. Muitos têm até porta-retratos de seu bicho preferido. Estamos treinando outros 30 cães para ampliar o projeto", conta Alexandre.

"Minha filha adora a visita da Mell (uma maltês), isso ajuda a descontrair o clima pesado de um tratamento hospitalar", afirma Louise Marry Klass, 26, mãe de Nathalie, 6, internada no Hospital da Crianças para tratar uma bronquite asmática. Louise já sabe que o período no hospital vai deixar uma "sequela" em Nathalie: a vontade de comprar um cão quando voltar para casa.

Ginástica Quem vê a adestradora de cães Sueli Freitas, 49, correr até quatro horas diárias ao lado da sheepdog Sasha, praticando "agility" (corrida de obstáculos para cachorros) no parque do Ibirapuera, não imagina que, há apenas um ano e meio, ela sofria com as crises de artrose e mal conseguia movimentar os dedos. Para combater o problema, Sueli praticava natação e era obrigada a tomar medicamentos diariamente.

A convivência com cães mudou a vida de Suely. "Larguei a natação e já parei com a medicação. Meu cardiologista diz que estou bem, tenho bastante fôlego e tonifiquei meus músculos. Agora, vivo com cães 24 horas por dia, e consegui unir o que mais gosto com o que preciso: tenho saúde e posso ficar o dia inteiro em contato com eles."

Solidão Ada Nicolaewsky, 49, sofria de depressão profunda com a morte da mãe. Havia perdido 22 quilos e tomava altas doses de antidepressivos. As filhas distantes, vivendo em Israel, pioravam a solidão ("você sabe como isso é difícil para uma mãe judia..."). Aí Ada descobriu Flufy: fez novos amigos, recuperou o peso perdido e reduziu a medicação. Flufy não é nenhum novo "Prozac" ou alguma seita messiânica. Trata-se de um poodle de 11 meses.

"Meu médico disse que foi a melhor coisa que fiz. Hoje, conheço e converso com pessoas nas ruas graças ao Flufy, que ajuda a quebrar o gelo e iniciar o bate-papo. A garotada do prédio nos chama para as festinhas e, no mês que vem, vou fazer a do Flufy. Todos já disseram que vão vir", anima-se.

Perder peso Que tal arrumar um cão para ajudá-lo na árdua tarefa de emagrecer? A radialista Regina Ramoska, 34, já perdeu 3 quilos com seu husky siberiano Igor. "Eu era sedentária, mas queria mudar. Era uma daquelas pessoas que se matriculavam na academia e no mês seguinte desistiam." Regina teve de mudar de hábitos quando resolver comprar um cão. Vivendo em um apartamento pequeno, 48 m2, o bicho precisa sair todos os dias para se exercitar. "Conheci bastante gente graças ao Igor, inclusive o meu atual namorado. Hoje, não sou mais estressada no trabalho e aprendi a viver melhor", anima-se.

Não é uma experiência inédita. Um estudo realizado em 1993, publicado na revista "Harvard Health Letter", demonstra que a companhia de animais deixa as pessoas com o humor mais constante, graças ao afeto incondicional dos bichos. Outros efeitos do convívio: queda nos índices de pressão sanguínea, frequência cardíaca e nível de ansiedade.

Amigo de fé "Ele é minha única amizade sempre sincera", afirma a modelo da Ford Karina Bacchi, 23, sobre seu cão yorkshire Teobaldo, o Téo.

Karina diz que, além de forçar a redução das calorias da dieta, a vida de modelo fez rarear o número de "verdadeiros" amigos. "Sei que muitos me procuram e me tratam bem por interesse. Téo não, ele tem um afeto desinteressado e incondicional. Não importa o que aconteça, ele sempre me recebe com alegria e felicidade. Aprendi a ser menos egoísta e a dividir meu tempo com meu cachorro", afirma.

Karina costuma comprar presentes para seu companheiro e faz questão de que venha embrulhado, para abrir na frente dele e garantir o ritual da "surpresa". "Nas lojas, tem gente que estranha, mas ele gosta de receber o presente assim."

É uma esquisitice bem compartilhada. Pesquisa de 1999 da Sociedade Norte-Americana de Hospitais Veterinários, realizada com 1.200 donos de bichos de estimação, demonstra que embrulhar presente para o animal é hábito praticado por 63% dos donos; 84% dos entrevistados ainda se denominam como "papai" ou "mamãe" de seu bicho. > Téo é o segundo cachorro da modelo. Há dois anos, ela perdeu outro da mesma raça, "devorado" por um maior na rua. Adquirir um outro bicho foi uma decisão difícil. "Tivemos que superar o trauma, mas foi a melhor coisa que fiz."

Os olhos "Ei, dona, não pode entrar com cão no hospital"; "Credo, um cachorro aqui dentro!"; "Será que morde?" Essas são frases que a médica Maria Regina Carvalho Silva, 50, ouve todo dia. Deficiente visual, ela não se separa do labrador Merlin, de 7 anos, inclusive no interior do Hospital do Ipiranga, onde trabalha.

Mas entre os pacientes da médica o estranhamento dá lugar à descontração. "As pessoas ficam mais receptivas, o Merlin abre um canal de comunicação. As consultas tornam-se mais fluidas", acredita. Maria Regina tem um precedente famoso: dizem que o psicanalista Sigmund Freud levava seu cão chow-chow Jo-Fi durante as consultas.

Ela conta que Merlin foi atropelado há um ano e precisou ficar um mês sem trabalhar. "Tive de voltar a pedir ajuda aos outros e perdi minha independência. Percebi tudo que eu já havia conquistado ao lado dele."

Nos Estados Unidos, existem cerca de 6.500 cães-guias atualmente, um hábito que começou no pós-guerra para ajudar veteranos da Segunda Guerra. No Brasil, cão-guia não é lá muito respeitado. Em maio deste ano, uma deficiente visual precisou de ordem judicial para entrar com seu animal no metrô. A Associação Cão-Guia de Cego registra apenas 15 animais aptos a conduzir pessoas em todo o país. Até a Coréia do Sul, famosa por colocar mais cães na panela do que na coleira, tem cerca de quatro vezes mais cães-guias do que o Brasil.

Pacificador Os irmãos Adilson Mário Belcastro e Adriana passaram oito meses sem conversar, mesmo vivendo sob o mesmo teto. "A gente brigava muito e chegamos ao ponto de falar somente o essencial. Se ela ficava na sala, eu saía para a cozinha." A situação mudou com a chegada do rotweiller Ayron. "Ele foi o catalisador da minha família. De repente, nós estávamos conversando sobre o cachorro e seus problemas de saúde. A vida em casa voltou ao normal e sei que devo tudo a Ayron", afirma Adilson.

Em 1998, pesquisa da Universidade de Búfalo (EUA) Äapresentada no encontro anual da American Psychosomatic SocietyÄ realizada com 50 casais que tinham animais e 50 que não tinham, demonstrou que lares com bichos apresentavam redução do estresse, ajudando a manter a vida a dois mais estável.

Há um mês, Ayron teve um problema grave de saúde, uma doença congênita que comprometia sua pata. O custo do tratamento foi orçado em R$ 1.300. "Não pensei duas vezes e paguei tudo. Sugeriram que eu sacrificasse o Ayron, mas eu jamais deixaria." Adylson gasta R$ 280 mensais para cuidar de seu cão. "A minha namorada tinha ciúmes do Ayron e do que eu gastava com ele. Nesse caso, eu também não pensei duas vezes..." Adivinha quem foi "sacrificado"?

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