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28/09/2004
Pedreiro transforma a própria casa em biblioteca

 

Ele já ajudou a construir centenas de casas, mas talvez nenhuma como a dele próprio, com 40 mil livros e um nome, Biblioteca Comunitária Tobias Barreto, localizada no bairro de Vila da Penha, no Rio de Janeiro. O pedreiro sergipano Evando dos Santos, 40, declamou poesias enquanto era entrevistado e, além do autor preferido —o que deu nome à casa-biblioteca—, falou de Pablo Neruda, Che Guevara, Machado de Assis, Voltaire, Ramsés, Dom Pedro, Gabriela Mistral e Aluízio Azevedo. "Livro para mim é vida."

Evando estudou na roça, na cidade de Aquidabã (SE), até o que ele acredita ser o segundo ano do ensino fundamental. "Quando eu ouvia falarem de língua portuguesa, pensava que portuguesa era uma pessoa, acredita?"

Como não havia livros em sua casa e ele deixou cedo a escola, a possibilidade de que surgisse alguma intimidade com a leitura era remota. "Meu único contato era com a literatura de cordel, que eu ouvia nas ruas", conta.

Apesar das condições contrárias e da pouca educação formal, a erudição do pedreiro e sua história são uma rara exceção no universo da leitura no Brasil —Evando lê cerca de dez livros por mês, o que o coloca muito acima da média de leitura dos brasileiros, que é de 1,8 livro por pessoa, por ano, de acordo com a CBL (Câmara Brasileira do Livro). Além disso, a maioria das pessoas que, como ele, teve pouco ou quase nenhum acesso à escola não consegue compreender o que lê. Apenas 25% dos brasileiros com idade entre 15 e 64 anos são capazes de ler textos longos, localizar mais de uma informação e estabelecer relações entre diferentes textos, de acordo com o Inaf (Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional) de 2003, índice obtido a partir de pesquisa da ONG Ação Educativa, em parceria com o Instituto Paulo Monte Negro, do Ibope.

Por não ter freqüentado a escola o quanto deveria e por não ter tido o estímulo para a leitura dentro de casa, Evando é um anti-exemplo. Segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, o gosto e o interesse pelos livros são adquiridos socialmente, apesar de a leitura ser um ato individual.

Para Vera Masagão, da ONG Ação Educativa, o principal ambiente em que as pessoas podem ser acostumadas ao universo da leitura é a escola, "com todas as deficiências que ela tem". Ao lado dela, está a família. "Quem nasceu em uma família de leitores, independentemente do poder aquisitivo dessa família, tem muita chance de se tornar um grande apreciador dos livros", acredita o presidente do Instituto Brasil Leitor, William Nacked. Um dado do Inaf parece sustentar essa opinião: a mãe é indicada por 41% dos entrevistados como uma das duas pessoas que mais influenciam o gosto pela leitura —professores são citados por 36%, e o pai, por 24%.

O caminho, assim, é de mão dupla: se o nível de letramento é baixo, é preciso realizar mudanças no sistema de ensino. Se o cidadão não consegue compreender o que lê e se não há o que ler nas casas das pessoas, o contato cada vez mais próximo e freqüente com o livro, ainda que o mais simples possível, pode levá-lo a querer se aprofundar no universo da leitura.

Mas nem todos entre os que conseguem compreender, por exemplo, uma reportagem como esta chegam a ser um leitor voraz de livros. De acordo com a CBL, há no Brasil apenas 26 milhões de leitores ativos, ou seja, lêem pelo menos quatro livros por ano. Além disso, somente um terço da população adulta alfabetizada aprecia a leitura de livros e, dos 2,4 livros per capita produzidos por ano no Brasil, apenas 0,7 são não-didáticos, segundo o MEC.

Assim, há dois caminhos a serem seguidos: um que leve a literatura aos que não lêem e possuem baixo nível de letramento e outro que direcione os leitores ativos a lerem ainda mais livros.

"Para aquele que não lê, não adianta querer unir forma e conteúdo. Ele nunca vai conseguir se interessar. Se você der algo que ele quer muito, vai funcionar. Ele tem de conviver com o objeto para saber o que pode encontrar nele", acredita Marino Lobello, vice-presidente da CBL. Para Evando dos Santos, o pedreiro dos 40 mil livros, o importante é o leitor "se achar". "Você não pode dar feijoada a quem só consegue comer caldo verde", brinca.

Para despertar o interesse pela leitura em quem não tem formação, valem esforços como o da professora Maria do Socorro D'Ávila Oliveira, que coordena o Mala de Leitura, projeto do Centro dos Trabalhadores da Amazônia. Ela leva livros para comunidades do interior da floresta do Acre, como uma biblioteca ambulante. São duas horas de carro para ir de Rio Branco a Xapuri. De lá, Socorro pega um barco e, depois de dois dias, chega à floresta, onde caminha por mais oito horas até a comunidade de São José, que tem cerca de 40 habitantes. Na bagagem, duas malas de livros.

Segundo a professora, ainda que os livros sejam simples —às vezes de pequenas frases—, são a "isca" para despertar o interesse. Prova disso é que, em São José, os moradores lêem até 20 livros em dois meses —tempo médio em que a mala fica na escola da região, até que uma nova troca das obras seja feita. Nas comunidades, pais, filhos, tios, primos, todos lêem juntos.

O resultado do esforço de Socorro faz com que ela defenda com propriedade a tese de que, tendo livros à disposição, as pessoas lêem. "Podem começar aos poucos, mas logo descobrem o quanto esse hábito pode ser agradável." William Nacked, do IBL, concorda: aqueles que têm pouca instrução precisam descobrir o prazer da leitura sem compromisso, para assim adquirir o "vício".

Mas os integrantes do projeto Vamos Ler um Livro, do Núcleo Cultural Força Ativa —que nasceu no movimento hip hop e hoje realiza diversos projetos sociais e culturais em Cidade Tiradentes (zona leste de São Paulo), lutando principalmente contra o racismo— discordam dessa falta de compromisso com o que se lê. Para eles, mesmo quem possui pouca cultura literária deve aprender a ser seletivo. "Quando falamos de leitura, nos referimos à busca de conhecimento, o que não se faz lendo 'qualquer coisa'. Existem leituras e leituras, e nós incentivamos a leitura de autores preocupados em entender o Brasil e a sociedade de um modo geral", diz o porta-voz do grupo, Washington Lopes Góes, 28.

O grupo de rap Juventude Armada, cujos integrantes fazem parte do Força Ativa, compôs a canção "Vamos Ler um Livro", que dá uma idéia do trabalho realizado pelo núcleo. Sem meias-palavras, a canção dá o recado: "Chega de ler besteira/ Chega de babaquice/ Procure se informar/ Não seja o mestre da burrice/ São tantos que falam merda/ E isso enjoa, é um tormento/ Procure ler um livro/ Pois é a máquina do tempo".

Se as palavras cantadas no rap são eficazes para instigar as pessoas à leitura, mais uma vez a história de Evando dos Santos confirma que ouvir pode ser um bom começo. Para ele, "é preciso dar livros às pessoas e ensiná-las a gostar de ouvir histórias. Sem o contato humano, é mais difícil surgir o interesse pela leitura".

Depois da literatura de cordel que ouvia em Aquidaban, foi o pastor da igreja que, indicando-lhe a leitura dos salmos, "que são poesia doce como o mel", fez com que Evando passasse da curiosidade à prática. Mas o impulso que o levou à paixão pela literatura foi dado por um colega de trabalho. "Na hora do almoço, todo dia, ele ficava quieto em um canto, sério, lendo, e não gostava que ninguém chegasse perto. De repente, levantava e dizia: 'Hoje declamarei Shakespeare, falarei de Leonardo da Vinci'. E eu lá sabia quem era esse Shakespeare? E ele dizia: 'Prestem atenção, ouçam. Só se aprende ouvindo'. Com isso, esse homem me arrebatou o espírito!", conta Evando, que então começou a comprar livros.

Mas não é preciso esperar o rompante poético de um colega de trabalho para ouvir a declamação de poesias ou a leitura de um conto. É possível participar de saraus e recitais de histórias em locais como a praça Benedito Calixto, em São Paulo —onde todos os sábados acontece o projeto Autor na Praça—, e bibliotecas onde contadores de histórias, atores e jogadores de RPG procuram estreitar o contado das pessoas com os livros.

"Não basta a estante com livros, isso não garante a formação de leitores. Criando estratégias de apropriação do leitor com o espaço da leitura conseguimos formar o hábito", acredita Durvalina Soares Silva, coordenadora do setor de Bibliotecas Públicas e do de Bibliotecas Infanto-Juvenis da Prefeitura de São Paulo. Ela comenta que, nos saraus, a produção local vem à tona, "e as pessoas não saem mais da biblioteca, assumem um vínculo que também é afetivo".

E como fazer o leitor ativo, que lê quatro livros por ano, passar a ler oito? Para Lobello, esse público carece de polimento. O vice-presidente da CBL acredita que essas pessoas difundem o hábito da leitura e são permeáveis a campanhas promocionais —como coleções a preços acessíveis e livros de bolso.

A recém-criada biblioteca Embarque na Leitura, instalada pelo IBL na estação Paraíso do Metrô, em São Paulo, quer fazer isso.

Os passageiros que circulam diariamente por ali —são cerca de 250 mil— podem retirar um livro de graça. A média de cadastros tem sido de 300 por dia.

Mais convidativa aos leitores também espera ficar a Biblioteca Mario de Andrade, em São Paulo, a segunda maior do país, que está passando por uma reforma para ampliar as possibilidades de atendimento ao público. Por enquanto, problemas estruturais começam a ser resolvidos, alguns graves, como o mofo na sala de mapas. Para o ano que vem, pretende-se ampliar o salão de leitura da biblioteca e construir um novo auditório, entre outras reformas.

"A pessoa quer ser bem atendida em uma biblioteca, ter livros novos à disposição, um bom lugar para ler. Nenhum desses aspectos funciona no Brasil atualmente", acredita José Castilho Marques Neto, diretor da Mario. Dados do Inaf mostram que mais de um terço da população (34%) afirma nunca ter ido a uma biblioteca. Nas classes D e E, esse percentual é de 49%.

Na opinião de Pedro Corrêa do Lago, presidente da Fundação Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro, um fator é fundamental para despertar o apetite pela leitura: o acesso aos livros e a outras formas de texto impresso. "É um caso típico em que a oferta pode criar a demanda", diz Lago, que está à frente do projeto Fome de Livro, do governo federal, que pretende zerar o número de municípios brasileiros sem biblioteca.

O diretor da escola de Estudos Tecnológicos da Universidade de Michigan, nos EUA, Morell Boone, fez um trabalho sobre as bibliotecas das universidades. Ele acredita que a biblioteca do futuro, que já é realidade em diversos países, como disse ao Sinapse, "deve equilibrar dois mundos: o da livraria como depositório de livros e como um lugar que ofereça uma gama de opções para o consumidor".

Em Ribeirão Preto (314 km ao norte de São Paulo), das 72 bibliotecas comunitárias instaladas pela prefeitura desde 2001, aquelas em que a comunidade promove ações culturais são as que mais fortemente podem promover o hábito da leitura, acredita Christina Tavares, presidente do Instituto do Livro, organismo vinculado à Secretaria Municipal de Cultura da cidade e responsável pela coordenação do programa.

Instaladas em escolas, ONGs, igrejas, bases comunitárias e associações de moradores, cada nova biblioteca possui um acervo de cerca de 850 títulos, que totalizam aproximadamente 2.500 exemplares. O dado mais animador, para Tavares, foi o obtido há duas semanas, a partir de uma pesquisa realizada pelo Instituto do Livro: mostrou que a média de leitura da população de Ribeirão foi de sete livros em 2003. "A parceria com essas entidades garante o caráter público das bibliotecas, já que todas, mesmo as que ficam em escolas, são abertas à população. E em boa parte dos casos a solicitação vem da própria comunidade, o que já indica que o espaço não ficará dado às moscas", diz.

Outra ação recente aconteceu em julho, no Rally dos Sertões. Participantes da competição distribuíram pelo percurso 5.000 livros —além de 500 obras em braile— da escritora Patrícia Secco, 41. A autora já escreveu mais de 90 livros e distribuiu, em sete anos de trabalho, cerca de 16 milhões de exemplares das obras.

O livro, como objeto vivo dentro da sociedade, aproxima as pessoas. "Pessoas que lêem, quando próximas de outras que não lêem, geram interesse pela leitura", acredita Vera Masagão. Nesse sentido, mais uma vez a história do pedreiro funciona como coluna vertebral desse corpo chamado leitura. Todo final de ano —e o evento já está na sua quinta edição—, ele realiza a "feijoada literária", para cerca de 160 pessoas. "Todo mundo se alimenta muito. De comida e de poesia", brinca.

Evando, ainda que diga que só ele entende o que escreve, já produziu sua autobiografia —"As Aventuras do Pedreiro Maluquinho por Livro"— e reuniu pessoas da região onde mora para organizar o livro "A História da Penha Escrita pelos Moradores", que tem 120 páginas e 44 fotos. "Também estamos escrevendo o 'Dicionário das Pessoas Importantes Desconhecidas', em que vamos contar a história do coveiro, do pedreiro, do porteiro, da faxineira... Já temos 240 histórias, e queremos chegar a 2.000", diz o pedreiro, que conta com o apoio de estudantes de escolas da região.

O administrador de empresas Marcelo Sanuto, 50, foi contaminado por Evando: os primeiros 500 livros com os quais abriu, em sua casa, o que atualmente é a Biblioteca Comunitária Paulo Freire, que tem acervo de 12 mil exemplares, foram doados pelo pedreiro. "Sempre quis montar uma biblioteca comunitária. Soube do trabalho do Evando, e foi aí que tudo começou", conta Sanuto, que organizou no início do projeto, em 1999, no bairro de Caxias, no Rio, um mutirão literário que arrecadou 1.050 livros.

"Muitas pessoas tinham os livros guardados como objetos que ocupavam espaço. Queremos difundir a idéia de que, se eu dôo livros que tenho guardados, pessoas que não têm acesso à leitura terão a oportunidade de lê-los", diz Sanuto. Ele também seguiu o exemplo de Evando —que ajudou a montar outras 18 bibliotecas na Baixada Fluminense, também nascidas nas casas das pessoas— e já doou obras para abrir três bibliotecas em bairros vizinhos.

Em 1999, moradores de grandes residências de Moema, bairro de classe média alta de São Paulo, estavam migrarando para edifícios, justamente quando o geógrafo Aziz Ab'Saber, do Instituto de Estudos Avançados da USP, decidiu montar bibliotecas comunitárias. Com o apoio de "agitadores culturais", montou postos de coleta em farmácias, bares e até em uma academia de ginástica. "As pessoas não tiveram dúvidas: doaram os livros. Ele ajudou a estruturar 21 bibliotecas comunitárias, que têm ao todo cerca de 40 mil obras, instaladas em escolas de samba, cursos pré-vestibular populares e associações de moradores, entre outros locais da capital paulista.

Essas iniciativas, somadas às ações de organizações, governos e empresas, podem de fato fazer com que o livro chegue até as pessoas, e não há outra maneira de criar condições para formar futuros leitores. Com os livros à mão e com atividades que desenvolvam nas pessoas o interesse por manuseá-los, folheá-los, absorvê-los, talvez muitas casas passem a ter, além dos tijolos manuseados por Evando dos Santos, um décimo dos 40 mil livros que, hoje, são como novas paredes na casa do pedreiro.

Ele não pára aí —outras paredes estão nos seus planos. Quer montar uma faculdade comunitária que conta até com projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer. Mas seu principal sonho é ver os livros tão difundidos quanto um prato de arroz e feijão. Em "A Vida de Galileu", peça do escritor alemão Bertolt Brecht, Galileu Galilei diz ao seu assistente Andrea: "Ponha o leite na mesa, mas não feche os livros". A cena se assemelha ao desejo de Evando e de outras pessoas, que aguardam o dia em que a literatura faça de fato parte da rotina —e da cesta básica— das pessoas.


ANTONIO ARRUDA
free-lance para a Folha de S.Paulo

   

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