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Entre janeiro e maio deste ano,
apenas 19 pessoas que andaram pela avenida Paulista deram
queixa de assalto. É uma queda de 82% em comparação com o
mesmo período de 2004. Dos alunos da primeira série do ensino
fundamental de Sobral, cidade do semi-árido cearense, 92%
estão alfabetizados. É uma subida de 140% em relação a 2000.
Em Sobral, o ensino fundamental dura nove anos. Tradução:
100% das crianças de seis anos de idade estão na escola. Há
um distância de 3.178 km entre a imponente avenida Paulista,
cartão-postal da cidade de São Paulo, e Sobral, cidade do
semi-árido do Ceará, castigado pelas secas e pela miséria
crônica.
Duas paisagens diferentes em tudo -toda a população de Sobral
não significa nem 10% do 1,5 milhão de pessoas que caminham
diariamente pela avenida Paulista- formam um mesmo laboratório
de inventores sociais. Sem saber, inventam até mesmo um meio
de combater a roubalheira neste país de "mensalões".
Técnicos do Unicef, do Ministério da Educação e de entidades
como o Instituto Ayrton Senna consideram Sobral um dos nossos
mais férteis modelos de melhoria da educação em ensino fundamental.
Para compreender o que significa ter 92% das crianças alfabetizadas
na primeira série, basta lembrar que, na cidade de São Paulo,
só 65% das crianças que estão nesse mesmo nível educacional
sabem ler e escrever.
Na alfabetização precária está um dos nós de toda a educação
brasileira: esse fato ajuda a explicar, pelo menos em parte,
até mesmo por que 92,84% dos bacharéis em direito que realizaram
o exame da OAB-SP foram reprovados neste ano. Na semana passada,
em debate na Folha, o presidente da OAB-SP, Luiz Flávio D'Urso,
contou que, em algumas provas, havia quem não conseguisse
fazer uma só concordância gramatical correta. "Parece que
não sabem o que é plural", disse.
Especialistas em segurança que atuam no Japão, um dos países
mais seguros do planeta, vieram conhecer a experiência da
avenida Paulista, onde, desde outubro de 2003, não há nenhum
registro de assassinato. Aquela avenida foi, no passado, um
verdadeiro paraíso para os delinqüentes, para lá atraídos
pela multidão de pessoas de classe média que andavam pela
rua.
Montou-se uma rede de policiamento preventivo em muitas das
esquinas dos três quilômetros da avenida. Todo sistema é conectado
a policiais que andam a pé, de moto ou de automóvel.
O mapa da mina das duas experiências é o seguinte:
1) Haver um empreendedor capaz de mobilizar, articular e manter
os mais diversos parceiros públicos e privados. No caso de
Sobral, foi o então prefeito, Cid Gomes, que, depois de reeleito,
ainda fez seu sucessor -é a garantia da continuidade das ações.
No caso de São Paulo, a articulação e a mobilização da teia
de apoio vêm da associação Paulista Viva, entidade comandada
por um empresário (Nelson Baeta) que, em conjunto com o poder
público, montou o esquema de segurança.
2) Trabalhar com números claros da realidade, metas definidas
e avaliações periódicas. Em Sobral, foi feito um amplo levantamento
da situação educacional das crianças, foi medida a tragédia,
escolhido um foco e estabelecidos os passos para atingir os
resultados desejados. Um banco de dados, alimentado diariamente,
mostra o perfil do crime na avenida Paulista -assim, não se
atira a esmo, mas com mira.
3) As metas serem não do governo, do partido ou do político
no poder, mas da comunidade. Em Sobral, quando um aluno falta
dois dias à escola, uma professora vai procurar os pais dele.
Se não os encontra, faz um apelo pela estação de rádio. Os
crimes na Paulista são analisados mensalmente, vistos não
como o sucesso de um governador ou de um secretário de segurança,
mas como o resultado de um esforço coletivo - assim como os
indicadores educacionais de Sobral.
4) Os profissionais serem treinados periodicamente e estimulados.
Em Sobral, além de realizarem cursos, os professores ganham
bônus pelo desempenho dos alunos. São, portanto, sócios do
sucesso. Os policiais da avenida Paulista tiveram treinamento
para lidar com temas comunitários. Recebem gratuitamente aulas
de inglês -afinal, há muitos turistas que passam pela avenida.
Ao final da tarde, senhoras levam-lhes café, tortas e salgados.
Os policiais têm acesso a programas antiestresse no Masp,
onde participam de oficinas de arte.
Foi colocado ar-condicionado nos postos móveis da PM. Evidentemente
os problemas de educação em Sobral e os de segurança em São
Paulo continuam trágicos, mas as duas cidades são valiosos
exemplos, verdadeiros softwares comunitários, aplicáveis em
qualquer lugar. Como na maioria das experiências de sucesso
de gerência, juntam-se dois tipos de tesouro de uma comunidade:
o capital humano (educação) e o capital social (a rede de
relações de confiança entre indivíduos e instituições). Revela-se,
nessa química, a força local, palpável, onde se vêem com os
próprios olhos os acertos e erros.
Sobral e a avenida Paulista nos ensinam que, além de aumentar
a eficiência no uso de dinheiro público, quanto mais fortes
as cidades e mais educados e articulados os seus habitantes,
mais chance existe de eficiência. E menos de ladroagem.
Tirar poder do presidente e dos governadores e vitaminar as
cidades é um dos meios de fazer que mais pessoas acompanhem
de perto o que se faz com o dinheiro público. Isso pode não
acabar com a roubalheira, mas a inibe. Se todo esse escândalo
que temos acompanhado pela mídia se resumir a um show de vilões
e supostos mocinhos, sem haver mudança nas estruturas, ficaremos
apenas patinando.
PS - Coloquei no meu site (www.dimenstein.com.br/) o relato
sobre a experiência feita pela psicóloga Izolda Coelho, secretária
de Educação de Sobral. Considero-o leitura obrigatória.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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