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REFLEXÃO


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urbanidade
27/10/2004
Memória de vinil

Desde que, há cinco anos, chegou de Campinas, onde tinha uma vida pacata -quase todos os dias almoçava em casa-, Fábio Nascimento foi assaltado cinco vezes em São Paulo, três das quais nos últimos seis meses. "Um assalto por ano", diz. Apesar do estresse paulistano, ele não sente vontade de ir embora, especialmente por causa do que lhe vai acontecer nesta noite de quarta-feira.

Na adolescência, Fábio começou a colecionar discos de música erudita. "Sonhava em ser violinista." Ele já contava com mil exemplares, todos de vinil, mas resolveu desfazer-se de tudo para, aos poucos, ir comprando versões gravadas na limpidez de um CD. Preservou apenas um disco de vinil, transformado em relíquia: um concerto que os pianistas Arthur Moreira Lima e João Carlos Martins fizeram no Carnegie Hall, em Nova York, alternando composições de Bach e de Chopin.

"Gostava tanto daquele concerto que tive medo de que, por acaso, ninguém o regravasse. Não quis me arriscar."

Fábio ia substituindo, semana após semana, seus antigos discos por CDs. A única peça que destoava nas estantes era aquele disco de vinil. "Ouvia-o sempre com reverência."

Fábio tornou-se violinista e entrou na Orquestra Sinfônica de Campinas. Mudou-se para São Paulo em 1999, sem saber que, a partir daquele ano, João Carlos Martins nunca mais seria capaz de repetir a performance do Carnegie Hall: um tumor tirou-lhe o movimento das mãos.

Para João Carlos Martins, mundialmente reconhecido como um dos melhores intérpretes de Bach, tocar piano ia se transformando num passado tão distante como um disco de vinil. Depois de perder a mão direita, em 1999, tentou tocar apenas com a esquerda, que funcionou até 2002. Como as mãos ainda eram capazes de segurar a baqueta, resolveu então aprender regência. "Foi o que me sobrou para não ser abandonado pela música e, assim, minha vida não perder o sentido."

Desses estudos de regência nasceu a idéia de ter sua própria orquestra. A idéia saiu da partitura, e a orquestra estréia hoje à noite, na Sala São Paulo, com a bilheteria esgotada. Sentado entre os violinistas, estará Fábio Nascimento, com sua memória do vinil. O concerto vai ser gravado, o que significa a certeza de mais um CD em suas estantes. Mais uma relíquia pessoal -afinal, desta vez, em sua coleção estará compartilhando o palco com João Carlos Martins.

 

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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