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folha de s.paulo
31/10/2005
As duas mortes de Vlado
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O cineasta João Batista Andrade entrevistou
transeuntes na praça da Sé, em São Paulo, para checar se alguém
sabia quem foi Vladimir Herzog. O desconhecimento era previsível
antes de qualquer pesquisa. Provavelmente, se fizessem as perguntas
até no campus da USP, as respostas seriam constrangedoras. Tema
do filme de Batista Andrade, o assassinato do jornalista nas
dependências do DOI-Codi teve a importância de catalisar ainda
mais a indignação contra o regime militar e estimular o processo
de redemocratização. Neste ano completam-se 30 anos do episódio
que, na época, recebeu a versão oficial de suicídio. O tempo
é uma das explicações óbvias para o esquecimento.
Além da distância no tempo, o esquecimento tem a ver com a ignorância
do brasileiro sobre sua história; aliás, a dificuldade já começa
na leitura de um texto. O pior de tudo, porém, é que a banalização
da violência tornou, para muita gente, aquele episódio algo
menor.
O resultado do referendo, na semana passada, é uma prova dessa
banalização: a nação, apavorada, comprou a ilusão de que as
pessoas armadas vão estar mais protegidas para se defender dos
marginais.
O que vou escrever aqui pode parecer uma heresia política. A
exposição do brasileiro à violência é hoje maior, muitíssimo
maior, do que nos tempos do brutal assassinato de Herzog. Isso,
óbvio, não se presta nem remotamente a justificar um regime
autoritário que, em 20 anos de existência, matou 300 pessoas,
entre elas Herzog. Vamos à incômoda comparação.
Na quinta-feira, foram divulgadas as mais recentes estatísticas
sobre os homicídios na cidade de São Paulo: a média é de 194
vítimas por mês. Ou seja, em 45 dias, apenas numa cidade, morreu
a mesma quantidade de pessoas do que em 20 anos da ditadura
militar.
Note-se que, desde 1985, não se conseguia um índice de homicídios
tão baixo. Se olharmos o ano de 1998, quando a média mensal
-mais uma vez, apenas na cidade de São Paulo- era de 574, os
mortos do regime militar caberiam em míseros 15 dias. Esse cálculo
deve ser encarado com várias cautelas. Um assassinato político
tem diferentes implicações, porque é cometido pelo Estado, cuja
missão é proteger o cidadão. Por trás dessa violência está em
jogo toda uma concepção de país em que não se respeitam os mais
elementares direitos, como o de expressão.
Do ponto de vista, porém, da vulnerabilidade individual, os
números mostram uma guerra sem trégua; a cada ano, 35 mil brasileiros
são assassinados, a imensa maioria deles jovens. De 1979 até
hoje, calcula-se que houve em torno de 700 mil os homicídios.
Sem contar os feridos.
Nem se pode dizer que o poder público não continue torturando,
perseguindo e matando arbitrariamente. Por causa da indiferença,
a elite não se sente perseguida pela polícia -tais arbitrariedades
não provocam tanta indignação como a perversidade dos militares.
Apesar das ilusões vendidas, no referendo, da turma do "sim"
e do "não", saímos todos ganhando pelo simples motivo de que
toda essa mobilização ajudou a aprofundar o debate sobre as
causas da violência e enfrentá-la. O que tende a aumentar a
cobrança em cima dos governantes.
A cobrança vai implicar, além da melhoria da polícia, um esforço
educacional constante e maior eficiência de programas sociais.
Será inevitável que os poderes federais, estaduais e municipais,
associados com a comunidade, concentrem-se nas áreas deflagradas,
transformadas em espécies de guetos. O talento de lideranças
locais em bolsões de violência, apoiados no policiamento comunitário
e em programas sociais, levou, em parte, a cidade de São Paulo
a atingir seus melhores índices de homicídio em 20 anos.
Enquanto não se disseminar essa tecnologia de paz e os brasileiros
continuarem a se iludir com idéias como pena de morte, aumento
da maioridade penal ou a comercialização de armas, estará em
discussão também a incompetência do regime democrático em administrar
conflitos -e, aí, será a dupla morte de Vlado.
P.S. - O segredo da resistência paulistana reside no seguinte:
é uma cidade feia, degradada e violenta que, ao mesmo tempo,
reúne a elite do terceiro setor. Foi, na cidade, por exemplo,
que surgiu a campanha pelo desarmamento. Dessa combinação entre
colapso urbano e riqueza humana está nascendo, aos poucos, uma
vanguarda de soluções comunitárias. É o que explica, em parte,
por que os bolsões de violência têm apresentado uma queda tão
acentuada nos níveis de assassinato. O surgimento dessa resistência,
quase como uma guerra de guerrilhas, é a melhor história da
cidade de São Paulo neste século 21. Ainda é muito pouco. Se
somarmos roubos e furtos , na cidade, entre janeiro e setembro,
temos: 158.612 casos. Desse total, foram 71.356 veículos. Isso
dá 11 carros por hora.
Coluna originalmente publicada na Folha
de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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