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entrevista
06/10/2004

ONG investe na respiração para combater o estresse

Presidiários, estudantes, empresários, meninos de rua, donas-de-casa. O perfil dos que já 'aprenderam a respirar' com a Arte de Viver - uma ONG que atua em mais de 140 países - é o mais variado. Porque respirar é muito mais importante do que parece. E tem papel fundamental para o bem-estar físico e emocional. Especialmente ao reduzir o estresse e aumentar o auto-conhecimento.

Nesta entrevista, a argentina Eng-An Chou, coordenadora no Brasil da Arte de Viver, uma das maiores organizações humanitárias do mundo, fala sobre a experiência da ONG em comunidades de baixa renda que já participaram de cursos voltados para combater o estresse e elevar o nível de consciência e vitalidade.

No Brasil, a Arte de Viver já trabalhou com catadores de lixo em São Paulo, e com moradores de comunidades de Salvador (Bahia) e de Duque de Caxias (Rio de Janeiro). Agora, busca apoio para ampliar sua ação no país. Fundada em 1982 pelo pacifista indiano Sri Sri Ravi Shankar, a ONG desenvolve trabalhos nas áreas social e de educação e tem estatuto especial de consultora no Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ONU).

De que maneira se desenvolve o trabalho da Fundação Arte de Viver?
Um dos nossos trabalhos principais é de combate ao estresse, porque acreditamos que o estresse alimenta a violência, as doenças físicas e emocionais. Neste sentido, oferecemos vários cursos que têm como base técnicas de respiração. Partimos do princípio de que a respiração tem um papel fundamental na maneira como nos sentimos física e emocionalmente. Desta forma, respirar é também aumentar o nosso nível de consciência sobre tudo o que nos diz respeito. Nos cursos, damos ferramentas para que as pessoas possam reduzir o nível de estresse e, em conseqüência, aumentar o nível de energia, a concentração, o entusiasmo, enfim, revigorar a saúde interna (emocional, espiritual) e externa (física). É um trabalho envolvente porque quando nos sentimos seres humanos, plenos, temos vontade de nos expandir e de ajudar aos outros, ajudar nossa comunidade, preservar o meio ambiente, e assim por diante.

Respirar é então muito mais do que a satisfação de uma necessidade vital?
Sim. Mais de 80% das impurezas físicas e emocionais presentes no corpo são eliminadas através da respiração, mas a maioria das pessoas utiliza somente 35% da sua capacidade pulmonar. A respiração é a fonte da vida, é o que temos de mais íntimo, mas não sabemos como usá-la. Saber como usá-la de forma consciente, e reservar alguns minutos do dia para praticar a técnica, pode significar uma grande mudança. Uma das técnicas que utilizamos é o Sudarshan Kriya, que se baseia em variados ritmos de respiração. Existem diversas pesquisas, como a do Instituto Nacional de Saúde Mental e Neurociência da Índia, comprovando que o Sudarshan Kriya reduz o nível de cortisol, que é o hormônio do estresse, e aumenta o nível de serotonina, hormônio do bem-estar. Em conseqüência, a depressão e a ansiedade diminuem e a vitalidade e a concentração aumentam.

Como é a abordagem do curso em comunidades de baixa renda?
Temos dois cursos que oferecemos para as comunidades de baixa renda. Um deles se chama Respiração, Água e Som e o outro seria uma variação do curso Arte de Viver (considerado um dos principais). O Respiração, Água e Som é como uma etapa inicial, uma introdução para o Arte de Viver. São três dias de duração, de uma hora e meia cada, mas as transformações são impressionantes. Falamos sobre a importância da alimentação, da respiração e de coisas tão simples como rir. As técnicas que ensinamos no curso de alguma forma contribuem para a mudança na percepção de algumas questões, promovendo também o bem-estar interior. Quando acaba, muitas pessoas querem mais. Então oferecemos o curso Arte de Viver, que é um trabalho mais profundo, intensivo, para jogar fora todo esse lixo que acumulamos com o tempo e que nos faz mais agressivos, doentes, depressivos, ansiosos, etc. A gente não varre a nossa casa? Precisamos fazer o mesmo com nosso "lixo emocional".

A Fundação já realizou cursos em comunidades brasileiras ?
No Rio de Janeiro, em outubro de 2003, realizamos o curso A Arte de Viver para cerca de 600 crianças e jovens e 100 adultos de comunidades como Morro do Sapo, Morro da Telefônica, Morro Alto da Boa Vista, Mangueira, entre outros, em Duque de Caxias (Baixada Fluminense). O curso foi feito na Instituição Afro-Cultural Ojuobá Axé, que reúne moradores dessas comunidades para diversas atividades culturais. Eu trabalhava diariamente com cinco, seis grupos. A princípio, era complicado para as crianças se manterem em silêncio, sentadas em uma roda. Os sapatos ficavam jogados pela sala, a bagunça era total. Mas, a medida que o tempo passava, o que era um desafio começou a dar resultado. As mães diziam que os filhos estavam mais limpos e menos agitados, passando mais tempo dentro de casa. A cozinheira que ficava no andar de baixo do Instituto me dizia: "Eles passaram a falar em vez de gritar. Até o passo deles está mais leve". Em pouco tempo notamos que os meninos conseguiam resolver as diferenças rapidamente, sem recorrer à implicância e à agressividade. A coordenadora do Instituto veio me contar, surpresa, que dois meninos, pouco depois de terem se desentendido, apareceram abraçados, falando que já eram amigos e que não tinha por que ficarem de castigo. Ela disse que isso nunca tinha acontecido antes.

Neste tipo de trabalho não é mais difícil envolver os adultos?
Em Duque de Caxias começamos com as crianças, depois chegamos aos adolescentes e, pelas histórias que os meninos contavam, percebemos que tínhamos que envolver também as mães. Eles contavam histórias duras, de pais muitas vezes alcoólatras, que batiam neles. A princípio, as mães foram meio contrariadas, tiveram que ser convencidas pelo Instituto. Já no terceiro dia estavam todas encantadas. Algumas mulheres que sofriam de enxaqueca, dores nas articulações, diziam que já não sofriam mais. Elas me contavam muitas histórias fantásticas e, dessa vez, os filhos é que vinham me dizer coisas como: "Tia, minha mãe está tão calma, ela nem bate mais em mim". Conseguimos fazer o trabalho com quase 100 mães. Os seis dias de curso não foram suficientes, fizemos em dez. Mas nós começamos os cursos no Brasil em 1998 e em comunidades há cerca de um ano, em São Paulo e Salvador. Em São Paulo, fizemos o curso Respiração, Água e Som com catadores de lixo de duas cooperativas, por três meses. Foi difícil manter eles juntos por tanto tempo em um trabalho como o nosso, porque o tempo que eles têm é para levar dinheiro para casa. Neste caso, o trabalho de envolver os adultos foi duplamente difícil. Mas os resultados foram muito positivos, disseram que trabalhavam mais relaxados, com mais vitalidade e alegria de viver.

O desafio é fazer com que ações como essa tenham continuidade...
Aqui no Brasil estamos em busca de parceiros para ampliar o trabalho em comunidades e ajudar a criar uma transformação real. Gostaríamos de atuar profundamente em uma comunidade que tenha muito interesse em se transformar e acreditamos que disseminando nosso trabalho estaremos contribuindo para diminuir a violência. A idéia é poder voltar nas comunidades visitadas e criar dentro de cada uma multiplicadores, pessoas que queiram assumir essa responsabilidade para dar continuidade ao trabalho. Acreditamos que temos uma coisa preciosa que pode funcionar, porque temos visto funcionar em muitos outros lugares do mundo, mas para isso precisamos de um apoio maior. Na Índia temos muitos voluntários, na Argentina, milhares. O que temos que fazer no Brasil é conscientizar as pessoas de que a sociedade pode melhorar com a participação de cada um. É preciso criar essa cultura, todos têm que se sentir responsáveis, é o que chamamos de 'sentido do pertencer'.

E como é feito o trabalho nas comunidades da Índia ?
Na Índia a Arte de Viver adotou 25 mil vilarejos e abriu mais de 100 escolas para comunidades de baixa renda. A mudança é real, as pessoas deixam de consumir drogas e passam a agir para transformar a comunidade. Lá o projeto se chama 5H – saúde (health), higiene (hygiene), habitação (home), harmonia na diversidade (harmony in diversity) e valores humanos (human values, em inglês). Partimos da idéia de que é preciso criar uma estrutura exterior (casa, banheiros, clínicas, escolas) e também uma estrutura interior – dar elementos para que as pessoas possam lidar com as emoções e se educar para os valores humanos. A Arte de Viver financia a construção das casas mas todos colocam as mãos para trabalhar. Nas escolas construídas, a educação tradicional é feita de maneira integrada com a educação da Arte de Viver. As crianças aprendem na prática os valores humanos. Não são apenas teorias. Por exemplo, elas não jogam o lixo na rua, aprendem a deixar os problemas para trás e a estar mais centradas no momento presente. Recebem tarefas como a de fazer um amigo por dia e estão sempre disponíveis para ajudar os outros. Na área ambiental estamos com um projeto de coleta seletiva e de conscientização das pessoas sobre os malefícios das sacolas de plástico. Eu fico impressionada porque aqui no Brasil tudo é vendido em saco plástico, mas nas nossas escolas utilizamos sacolas de pano. O plástico é terrível para o meio ambiente, não temos nem copinhos de plástico.

Quais os tipos de curso existentes ?
Agora temos dez instrutores no Iraque, já fizemos um trabalho com os bombeiros que atuaram no resgate das vítimas do World Trade Center, em Nova Iorque, entre outros trabalhos de alívio do estresse e do trauma. Temos cursos focados para presidiários, ex-presidiários e agentes de penitenciárias. Eu fui chamada para dar o curso em um presídio de segurança máxima de Buenos Aires, na Argentina. Foi muito interessante observar os presidiários, aqueles homens enormes, fazendo todo o curso em silêncio. Eles disseram que queriam fazer silêncio para que a palavra não atrapalhasse a atmosfera de paz. Também temos cursos para portadores de HIV, pacientes com câncer. No sul da África realizamos um trabalho com meninos de rua, adolescentes que fugiram de casa e estavam entregues às drogas. Todos eles voltaram para casa. Na Argentina, também trabalhamos com 60 adolescentes de rua. Desenvolvemos trabalhos em empresas como a Shell, Banco Mundial e em universidades. O curso é adaptado para cada um desses casos mas os resultados são sempre os mesmos: bem-estar físico e emocional, elevação do estado de consciência.

Então o trabalho pode ser feito em qualquer local, com todas as pessoas ?
Sim, claro. O ser humano está igualmente mal. O estresse está atingindo todas as cidades, classes, culturas, religiões. Nas escolas nos ensinam a escrever mas não ensinam o que fazemos com as emoções negativas. Quando sentimos raiva, angústia, ansiedade, fracasso, ambição, ciúmes, depressão, o que fazemos? Esse tipo de vivência é que é legal na Arte de Viver, reunimos pessoas de todas as religiões, culturas, raças. Sri Sri Ravi Shankar costuma falar que a religião é a casca da banana e a espiritualidade é a banana. Ele diz que ficamos segurando a casca da banana pensando que estamos com a própria banana. Na Arte de Viver a gente observa uma mudança real nas pessoas. Não é uma coisa teórica, do tipo: "Você precisa se sentir bem". A pessoa realmente se sente bem. Mas tem que fazer para saber.

Como costuma ser a receptividade ao trabalho da Arte de Viver ?
O preconceito está diminuindo. Hoje as pessoas começam a querer buscar a espiritualidade. A mudança que aconteceu comigo, por exemplo, foi radical. Eu era uma pessoa ansiosa, muito estressada. Cursei Relações Internacionais - Estudos sobre a Ásia e América Latina - na Boston University, nos EUA, e trabalhei em ONGs e em uma grande empresa na área de resolução de conflitos, negociação e mediação. Depois passei para área de Saúde Pública Internacional. Conheci Sri Sri Ravi Shankar quando ele ia fazer uma palestra na Universidade de Harvard. Um amigo praticamente me obrigou a ver a palestra, depois me obrigou a fazer o curso. O que me fez querer trabalhar na Arte de Viver foi ver as transformações reais que se passaram comigo e com as outras pessoas. Quando notei minha própria transformação, meu único desejo era expandir isso para o mundo inteiro.

JULIA DUQUE ESTRADA
do site EcoPop

 
 
 

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