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Crítica livro

Original, obra não refuga confronto ou riscos

Sete ensaios de forte sotaque sociológico questionam dogmas calcificados na (in)compreensão da nossa cozinha

Hoje vemos que, na gastronomia, quanto mais mexemos, menos sabemos

JOSIMAR MELO CRÍTICO DA FOLHA

Falar sobre gastronomia no Brasil está cada vez mais excitante: após décadas de lugares-comuns, vemos hoje que quanto mais mexemos, menos sabemos. Então parece pretensioso o título do primeiro ensaio (que dá nome ao livro) do sociólogo Carlos Alberto Dória, "Formação da Culinária Brasileira", apenas cem páginas para tal tarefa.

Mas o livro tem grande valor. Embora atualizado, este primeiro texto não traz muita novidade em relação ao livro homônimo de 2009. Mas recoloca observações que merecem ser repisadas, porque questionam dogmas calcificados na (in)compreensão da nossa cozinha.

Fruto da miscigenação generosa de índios, negros e portugueses? Não, diz ele, porque a mistura se deu sob o tacão de um deles, o europeu (que de tudo fez para dizimar os demais).

Cozinha mineira, baiana, gaúcha, nordestina? Tampouco --essas divisões regionais, de cunho sociogeográfico e utilidade turística, pouco têm a ver com as ocorrências culinárias pelo país.

Ele prefere sugerir classificações baseadas em manchas que unem história e ingredientes. Por exemplo: a "culinária da costa", dos pescados e leite de coco (do Maranhão ao Rio Grande do Sul); ou a "culinária caipira" (especialmente São Paulo e Minas Gerais, a do milho, do porco, do frango e de vegetais de horta, com feitio português).

Além deste texto principal, o livro se enriquece com mais seis, não raro impregnados por forte sotaque sociológico.

Eles abordam classificação de produtos; questionam a divisão culinária por regiões administrativas; investigam a sobrevivência regional de diferentes variedades do feijão; analisam a propagação de ingredientes "típicos" regionais; discutem o "estilo feminino de cozinhar"; e fazem propostas para a "renovação culinária brasileira".

O meu exemplar está todo anotado a lápis com "!!!" ("é isso mesmo!") e "X" ("de jeito nenhum"); mas principalmente, com "S?" --que, no meu patoá de leitor, significa "será??" e registra passagens que incomodam algumas das minhas certezas. É o melhor a esperar de um livro de reflexões: que traga novidades inquietantes.

Acho que no livro o legado dos negros ainda não está bem deglutido, e o relativiza demais; bem como supervaloriza a influência francesa (macaqueada pelos portugueses) no século 19 (inegável no ensino e em refeições da corte, mas bem menos nos hábitos alimentares).

E ante a pretensão do livro, falta maior demarcação das particularidades entre a cozinha profissional, pública, dos restaurantes, e a doméstica --difícil de levantar, mas que abriria caminhos de reflexão.

Há uma interessantíssima e rica abordagem do papel feminino na cozinha, onde falta considerar que a proeminência dos chefs homens corresponde também ao fenômeno maior do papel subordinado das mulheres na inserção no mercado de trabalho.

E admiro, no final, o questionamento do "exercício da cidadania ou da consciência ética do cozinheiro" para a excelência na cozinha.

É difícil sistematizar processos cujo desvendamento estão mal começando; é trabalhar no olho do furacão, com esforço para enxergar o que se passa ao redor e coragem de errar ao buscar saídas.

O livro de Dória não refuga confronto nem riscos, e traz a virtude da originalidade; uma pedra necessária para entender o fluido e inconstante universo da nossa gastronomia.

FORMAÇÃO DA CULINÁRIA BRASILEIRA: ESCRITOS SOBRE A COZINHA INZONEIRA
AUTOR Carlos Alberto Dória
AVALIAÇÃO bom
EDITORA Três Estrelas
QUANTO R$ 42 (280 págs.)lançamento 26/5, às 18h30, na Livraria Cultura, no Conjunto Nacional (av. Paulista, 2.073, Bela Vista)


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