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Comida

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Nina Horta

O que realmente o impressiona?

A pimentinha que os primos fingiam que engoliam e me faziam engolir quase me matou

A gente fala, fala de comida e, de repente, fica quieto, para pensar. Quando foi que um ingrediente ou um prato realmente me impressionou tanto que tenha mudado minha cabeça, meu modo de pensar?

Por incrível que pareça, não é tão fácil lembrar.

O primeiro susto foi depois de uma daquelas brincadeiras de pegador, na rua, suada, cansada, e a menina do vizinho foi até a cozinha comigo, pegou duas côdeas de pão, encheu de alho cru cortadinho, azeite e sal. Muito estranho. Era fortíssimo e era bom.

Havia um mundo fora do arroz e feijão, dos bolinhos fritos, das saladas verdes. E não foi fácil esquecer, o cheiro ficou no corpo, me fazendo por um dia italiana, me dando o passaporte do "casse-croûte", da refeição que não entrava no ritmo das refeições habituais.

Vinha aliviar a fome fora da hora, dar um momento de descanso e prazer em meio ao trabalho, que no caso era uma correria estabanada pelas calçadas. E, acima de tudo, era compartilhada, comida com a nova amiga sentada nos degraus de uma escada de cozinha.

Claro que muitas e várias frutas, como a jaca, a jabuticaba, o jatobá me surpreenderam. A pimentinha vermelha que os primos malvados fingiam que engoliam e me faziam engolir no pé quase me matou. O gosto de melão-de-São-Caetano me ronda o nariz até hoje, mas são só espantos.

Já era uma adulta quando fui fazer um curso do Alain Chapel, que passou por aqui. Já tinha experimentado comida de bons restaurantes, já sabia cozinhar, mas nada me impressionou tanto quanto a perfeição daquelas mãos de cozinheiro.

Fora convidado a dar umas aulas e poderia perfeitamente ter feito daquela tarefa um momento de distensão e de prazer para ele também. Mas, não. Cozinhar não era brincadeira. Tudo tinha importância. Numa mesa normal de cozinha, com um enorme naco de manteiga de fazenda no meio, fez a melhor das comidas. Qualquer coisa, tudo. Os purês de legumes, a manteiga de crustáceos, a sobremesa da avó. Tenho uma foto para provar, ao acabar a aula, aparecemos os dois exaustos, de olheiras, um pelo esforço em fazer bem, pela integridade e procura da perfeição, a outra de susto ao ver que a profissão poderia chegar aos céus.

Só naquela hora é que cheguei a sentir a importância real do ingrediente, a tal de sobremesa não passava de peras divididas em quartos, passadas no açúcar e na manteiga, rapidamente, numa frigideira capenga. Mas que pera rosada e doce, que atenção ao tempo, ao modo de servir! Fiquei enfeitiçada, queria a varinha de condão.

Ele sorteou um conjunto de facas que não ganhei, mas, sensível, viu que me tornei a pessoa mais infeliz do mundo e daí a um mês recebi recado do Banco do Brasil (!), para ir lá pegar uma encomenda. Era o set de facas com uma cartinha carinhosa vinda de Mionnay. Morreu cedo de infarte, de intensidade excessiva deixando toda a nouvelle cuisine como herdeira e órfã.

Depois tive surpresas boas com Daniel Boulud em Nova York, com Alistair Little em Londres, mas nada como essas coisas muda-cabeça que nos marcam como tatuagens.(Confesso que as facas eram ótimas, mas que de vara de condão não tinham nada.)

ninahorta@uol.com.br

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