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Depoimento

Cinéfilo, ator e diretor amava o cinema de forma diversa e indistinta

CACÁ DIEGUES ESPECIAL PARA A FOLHA

Conheci José Wilker num set de filmagem, e a ele voltamos juntos em pouco menos de metade de meus filmes. Em 1975, eu já estava no final da primeira semana de filmagem de "Xica da Silva", quando recebi recado do ator que deveria fazer o Conde Valladares dizendo que não ia mais participar do filme por causa de outros compromissos.

A primeira pessoa em que pensei para substituí-lo foi Wilker, que eu já havia visto e admirado em palcos de teatro e cenas na televisão.

A meu pedido, nosso produtor Jarbas Barbosa o procurou nos camarins do Teatro Ipanema, e três dias depois ele estava conosco em Diamantina (MG), participando de sua primeira cena na produção, um banquete selvagem na companhia de Zezé Motta.

Atendendo a meu angustiado apelo, sem nunca ter me visto antes, deixava temporariamente o mesmo Teatro Ipanema em que acabo de vê-lo pela última vez, deitado no mesmo palco em que tanto brilhou ao longo de sua carreira.

Fizemos seis filmes juntos. Eu e Renata Magalhães ainda produzimos seu único filme como diretor, "Giovanni Improtta", lançado no ano passado. Em todos esses trabalhos, nunca o vi queixar-se de doença, sentir-se mal, reclamar do corpo. Ele era sempre uma locomotiva arrastando o elenco com seu ânimo e sua inteligência.

Não é que estivesse sempre bem-humorado. Como todo sábio, ele também tinha seus momentos de fastio e desgosto. E não vacilava em expô-los a quem quer que estivesse à sua frente, fosse qual fosse a hierarquia ou o protocolo presumido.

Minha longa amizade com ele foi construída em torno de nosso amor comum pelo cinema, que ele cultivava na companhia dos cerca de 4.000 títulos que estava sempre a assistir no porão bem arrumado de sua casa.

Quando fazíamos filmes juntos, enquanto estávamos trabalhando, citávamos um ao outro conceitos, cenas e atores de grandes mestres. Ou não.

Wilker tinha pelo cinema esse amor diverso e indistinto característico de grandes cinéfilos como Henri Langlois, o fundador da memória cinematográfica --ele sabia da qualidade de um clássico diante de uma chanchada, mas não distinguia a importância de ver e gostar dos dois.

Wilker fez teatro, cinema e televisão desde o início de sua carreira até sua morte. Sei de jovens produtores e diretores que contaram com ele, em papéis grandes ou pequenos, praticamente sem remuneração, apenas para ajudar os que estavam começando ou dar uma força aos veteranos em dificuldades.

Assim como os jovens fazem seu serviço militar, ele não parou nunca de fazer seu "serviço artístico", com amor pelo cinema brasileiro e pelo próprio Brasil, um dos faróis de sua existência.

Filho de caixeiro-viajante e dona de casa, Wilker veio do Nordeste. Primeiro de Fortaleza, onde nasceu; depois do Recife, onde passou a maior parte de sua juventude. Como todo nordestino sensível, ele foi capaz de observar com emoção a miséria à sua volta e se dedicar, desde sempre, a combatê-la politicamente.

Além de tarefas no Movimento Popular de Cultura do Recife, como ativista e membro de seu corpo de alfabetizadores, Wilker escolhia os filmes e as peças que fazia à luz de suas ideias. Ele precisava acreditar na qualidade do que ia fazer, mas não vacilava em se juntar ao projeto que lhe falasse ao coração e à mente, voltado ao progresso social do país.

O grande artista foi embora, mas sua obra está aí para sempre, a serviço nosso e de nossos filhos, netos, assim por diante.

O que ele fez e deixou para nós será sempre imortal. Como no poema de Rimbaud, José Wilker é um oceano azul no horizonte do qual se encontra a eternidade.


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