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Crítica - Romance

Obra funde realidade e ficção ao contar história de amizade

O LIVRO REFLETE SOBRE A ESCRITA BIOGRÁFICA, CUJO CONHECIMENTO OBJETIVO É CONFRONTADO COM A MEMÓRIA SUBJETIVA

ALCIR PÉCORA ESPECIAL PARA A FOLHA

"Mil Rosas Roubadas", novo livro do escritor e crítico literário Silviano Santiago, solicita várias chaves de leitura.

Por exemplo, como biografia do ator, crítico musical e produtor Ezequiel Neves (1935-2010), amigo de Santiago desde 1952, quando frequentavam o Cineclube de Belo Horizonte e andavam pela cidade em busca de respiro intelectual, existencial e sexual em meio ao provincianismo dominante.

Conquanto fosse interessante conhecer episodicamente a vida de Zeca (ao menos para mim, que apreciava o seu estilo trepidante como crítico de rock do "Jornal da Tarde", na virada dos 60), pouco é dito a respeito dela.

Santiago centra-se nos primeiros tempos em que se conheceram, e, no dia de sua morte, em 2010, no Rio, quando o narrador --escondido/exibido sob a máscara de professor universitário de história-- toma a decisão de escrever a biografia do amigo.

Também pode ser lido como reflexão sobre as condições da escrita biográfica, desde que o conhecimento objetivo, historiográfico, fornecido por arquivos e documentos, é sobreposto ou confrontado com a memória presente, subjetiva, do biógrafo.

Mais ainda, quando essa dupla perspectiva se funde com a autobiografia, de modo que os lugares do objeto e de seu narrador se embaralham de vez.

Neste aspecto, a discussão desenvolvida por Santiago amplia-se até tatear uma hipótese nacional para a autobiografia, associada à "desimportância coletiva" do "self made man".

"En passant" lança uma farpa contra o memorialismo celebratório paulista, cuja única serventia seria inventar uma mítica elite "quatrocentona", sobre o fundo comum do conservadorismo político e do individualismo.

O livro pode ser lido ainda como construção formal baseada na combinação ostensiva de dois procedimentos elocutivos: a comparação descritiva e a ironia proverbial.

Assim, as sucessivas analogias com elementos concretos de observação detalhada, miúda, contrapostas às fórmulas genéricas kitsch acentuam a artificialidade do olhar criado pela escrita.

Tal maneira de comparar e ilustrar aumenta o fosso entre o objeto a ser descrito e a disposição intelectual de descrevê-lo. Crescem as camadas de difração entre o objeto e a experiência comum que se tem dele. Quanto mais ilustrado, menos visível, por assim dizer.

Por fim, pode-se lê-lo como estabelecimento do momento dramático em que a atividade biográfica, que já havia colocado o narrador na berlinda, leva-o agora a confessar-se publicamente.

A causa do crime ou do erro terá de ser buscada na rejeição amorosa instalada na cena primitiva entre biógrafo e biografado.

Paradoxalmente, neste ponto em que a memória, movida pela parrésia, pela franqueza, quer se denunciar como impostura, o narrador encontra também seu ponto de máxima autonomia discursiva. A biografia culpada torna-se invenção quase pura. Como na canção de Cazuza que dá título ao livro, oferece "mil rosas roubadas" ao amor de sua vida.


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